A miúda parada no parapeito da janela de uma velha casa como uma ave

Quinzenalmente o escritor Alerto Bia partilha o seu caderno de anotações de um quotidiano que pode ser real ou ficcional, quem sabe, quem vai saber...

Nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade uma porção de pó.

Samuel Pimenta

Coitada!

Ela está parada no parapeito da janela como uma ave. Olha para a rua sem ninguém. Surjo atrás da curva, de repente, ao compasso dos passos. Olha-me a mim. Vou com a cabeça baixa, dentro do livro, os olhos enterrados na corrente das palavras. Leio sempre algum livro quando caminho pela rua. Os livros são maus, são eruditos, não são objectos para dar às crianças brincarem com eles. Os livros rasgam os corações das crianças, aliás, os livros não são brinquedos, as crianças rasgam as folhas dos livros em papelinhos. Eu próprio em criança arrancava as folhas dos livros e fazia de papéis navios, aviões, e chapéus para me proteger do sol.

Leio sempre algum livro quando caminho pela rua porque os livros têm potência física.

Olho para ela. Usa óculos escuros. Os dreads locks enrodilhados no alto da cabeça. Olha-me a mim. Assemelha-se a uma ave molhada buscando conforto no batente da janela. Olho-a de soslaio.

O casarão está suspenso pela erosão. As folhas das janelas carcomidas pelas chuvas e sol. Os degraus gastos. O casarão é uma ruína com uma ave pousada no parapeito da janela.

Se pudesse deixá-la com um livro, e passar recolher na semana que vem, penso. Mas não, é má ideia. Os livros não servem para crianças. As crianças destroem os livros. Sempre que deitam mãos para alguns volumes, vem-lhes à tona, a ideia de construir um navio, construir um avião, ou um chapéu. Os livros não são brinquedos, são explosivos!

Deixo-a atrás, engolida pela distância, e prossigo andando, mas penso nela – submersa num tempo degradado – a miúda parada no parapeito da janela de uma velha casa como uma ave.

 

Por:  Alerto Bia

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Alerto-Bia nasceu a 02 de Março, em Inhambane. Possui uma publicação dispersa de textos em prosa e poesia nos jornais e revistas. Foi associado do CEPAN (Clube de Escritores, Poetas e Amigos do Niassa). Despontou no olimpo literário com a obra «Sonhar é ressuscitar, 2016» sob a chancela da Livre Editores, Maputo. Em 2017, Publicou «Sombras Cálidas, 2017» sob a chancela de Editora do Carmo, Brasil; «O desassossego por dentro, 2021» sob a chancela de Editora Folheando, Belém; Co-autor do primeiro volume de «Contos e crónicas para ler em casa, 2020»  sob a chancela de Literatas.

Foi distinguido no prémio internacional literatura e Fechadura, 2020 com a obra «O desassossego por dentro. E ficou em 4º Lugar no IV Concurso Internacional de Poesia – premio Cecília Meireles, 2019.

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