A Poesia é – Poesia para celebrar Dia Mundial da Poesia

Como as cartas de amor, as datas comemorativas são ridículas. Mas num cenário de crise de memória ou das mensagens instantâneas em aplicativos e dispositivos móveis onde os acontecimentos sobrepõem-se aos outros, talvez a única maneira que temos de viver a intensidade das coisas seja instituir datas. A Poesia é certamente das que não merecia que lhe déssemos um dia, porque, como disse Eduardo White, não serve para nada, e há dias que ela nem devia existir ou estar no meio de nós, como ordena Noémia de Sousa no seu poema “Poesia, não venhas!”: (…) Oh Poesia,/ não, não venhas hoje!/ Não vês que a minha alma/ não te pode compreender? / Que está fechada,/ e nada mais quer/ senão chorar?

Os dias que passamos são das sociedades numa panela térmica, é o aquecimento global dos nossos corpos e mentes, que tem de lidar com o urgente e o importante na mesma proporção. Hoje, mais do que nunca, talvez, o mundo precise de poesia, embora, seja grande esse mundo, e, talvez não caiba nos corações dos poetas, a Poesia é ainda, provavelmente, a única palavra indefinível. Diz e bem o poeta que subverte todas as formas da linguagem poética, Luís Serguilha:

Não aceito qualquer definição de poesia, qualquer técnica na reformulação/ conceptualização poética, por isso há que expulsar “o que é poesia”, os sistemas explicativos-teoréticos-interpretativos e expandir – germinar a correnteza da heterogeneidade: QUANDO HÁ POESIA? (O que é poesia?, Confraria do Vento | Calibán, 2019).

Ou então sejamos mais optimistas e crentes que há um lugar para a Poesia em todas as fases da vida, e um estado de sentimento para quem escreve (e sobretudo para quem lê), como nos define João Rasteiro, quando perguntado sobre o que é poesia:

Na juventude era sobretudo estranhamento, depois passou a ser brincadeira e prosápia, só que agora é medo e sofrimento. Poderia talvez dizer que a poesia é.

Por tudo isso e mais alguma coisa, decidimos apenas selecionar estes poemas para celebrar o Dia Mundial da Poesia. Para que, apesar de tudo que já aconteceu ou venha acontecer, hoje, a Poesia é.

 

Eis, a seguir, uma selecção de poemas de autores moçambicanos publicados entre 2012 e 2022.

 

Acendes-me no coração uma vela, a iluminada memória dos barcos; deixa que lhe rese uma ave, uma estrela; o rumor brando da tempestade costurando o azul das marés, as ondas inquietas rentes a retina que as orna; a orla distante como a casa para onde a saudade retorna. Nas mãos em concha, escreve-me as tuas sedes, as tuas águas, o bálsamo do silêncio que a palavra no seu íntimo revela, o habitável perfume das manhãs, a contígua janela ao umbral da noite que as desvela. Empresta-me o amarelo das tuas tardes, o sol ao meio repartido, pão aberto para a revisitação dos sentidos; dai-me um remo, a rima necessária para o meu poema náufrago. Sê ilha: catedral de terra e espuma, onde um búzio calado é um canto na boca da amargura. Refaz-te na minha pele cansada e apaga-me esta cicatriz, esta agrura; que eu, docemente, acordarei levitado, louco, quase incontido no lume dos teus braços.  

Álvaro Fausto Taruma, em “Recolher obrigatório do coração”, Alcance Editores, Maputo: 2022

 

Silêncio

 

Num mundo

da pluma urdido, 

teu nome sagrado

sem trégua evocada, 

nem guia, 

sorvert-te 

em volume 

máximo!

Melita Matsinhe, em “IGNIÇÃO DOS SONHOS”, Fundação Fernando Leite Couto, Maputo: 2017

 

19.

Mecânico voo das mãos

ascende o degrau do silêncio 

como um poema 

sem nada em que a emoção pouse 

excito as águas a molhar o vento 

que degola o cio da minha vaidade.

 

dentes de fome mordem o tempo 

nas cicatrizes envelhecidas ao murmúrio 

do vento que fala na melodia do silêncio.

Japone Arijuane, em “Dentro da pedra ou a metamorfose do silêncio”, Revista Literatas, Maputo: 2014

 

Todos os caminhos

 

Adormeço os meus passos

Na areia ou no asfalto

No meu frio quieto

Mergulhada no teu aparente abraço:

Meu eterno xiphahlu

 

Sorrio

Não de susto,

Já não me surpreende

Encontrar-te em todos os caminhos.

Énia Lipanga, em “Para enxugar as nódoas dos meus olhos”, Gala Gala Edições, Maputo: 2021

 

ESPECIARIAS

Que vício pode faltar ao sonho? Não posso meu corpo com folhas de açafrão ao entardecer, pintar meus olhos cansados de louro como que abençoado pela saudade. Sigo o chão dos silêncios, a água que capota nos teus seios, para que no amordaçar da língua, as areias quentes (…) tapem a dor aberta na viagem.

21.05.17

23:14

M.P. Bonde, em “A descrição das sombras”, Fundação Fernando Leite Couto, Maputo: 2017

IDAÍ?

Vi

na aurora o orvalho, 

raízes tortas de perfurar a terra, 

o solo sobreposto aos vales 

e à ténue linha do tempo.

 

Não vi arco-íris, 

vi chuva sob a pálpebra das nuvens, 

o vento e o mar revolto 

envoltos sobre o coração desapaixonado. 

Enquanto chegavas desfez-se a luz.

Vi

com estes olhos,

a cidade dobrar-se debaixo das águas,

debaixo deste asfalto.

Vi o sono flutuar 

das cavernas deste século,

sobre a mesa, a cama, lama,

na escuridão da noite.

Vi crianças,

idosos,

por fim,

pescadores.

Armindo Mathe, em “Mito Erecto”, Gala Gala Edições, Maputo: 2021 

 

14.

sonhei

as fronteiras dos países

a serem construídas por aves

o canto a cerca

o nascer do sol onde nasci

e a chegada do comboio

o escantilhão do chão

onde se deita a melodia

Nelson Lineu, em “asas da água”, TPC Editora, Maputo: 2019

 

*

Tudo respira em redor de uma raiz metida 

na algibeira do vento 

mesmo aquelas casas perfiladas na boca, 

respiram a viuvez das flores no dorso do pensamento 

um peixe em fuga assoalha os espelhos de trigo 

que fazem das mãos o pão.

Jaime Munguambe, em “As idades do vento”, Fundação Fernando Leite Couto, Maputo: 2016

 

Por Eduardo Quive.

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