Ajax Regressos é o mais recente espectáculo do Teatro da Rainha. Os escombros e a cor angustiante da desolação humana fazem de cenário perfeito para este retrato da nossa destruição interna. Entramos no teatro com o mesmo espanto de quem desce o inferno. Lá dentro é o escuro e uma luz flácida e fria que arrepia. Sentamo-nos e suspendemos a respiração, um Homem regressa com um cadáver de cão aos ombros.
O Homem é invisível como nós, como a nossa hipocrisia. O Homem matou o seu próprio cão. O Homem teve de abrir caminho, desbravar o manto de cadáveres que cobre a cidade. O Homem não sabe se está vivo ou morto. O Homem procura a mulher, regressa para a casa da felicidade. A mulher não o vê ou finge. A mulher tem a casa vazia, a alma destroçada. A mulher tropeça no cadáver do cão à porta de casa. A mulher não reconhece o Homem. Um estranho dentro de casa. Um nome impronunciável a rangir na boca. Um sussurro de morte.
Ajax Regresso é o epílogo da guerra. O que vem depois da morte e da destruição de todas as coisas. Este cortante texto de Sarrazac, o grande mestre do teatro rapsódia, desafia-nos a desconstruir a ideia de que o centro do conflito da guerra é o momento da sua consumação. Para Sarrazac a grande questão da guerra ecoa com mais força quando esta se acaba. Depois do estrondo mortífero dos canhões e mísseis nucleares, no silêncio das armas e gritos é onde explode o verdadeiro conflito existencial: ser ou não ser?
A encenação refinada de Fernando Mora Ramos é combinada com a espantosa atuação dos atores e atrizes. Os protagonistas, o Fábio Costa e a Mafalda Taveira, cada dia mais perto da natureza do vinho, quanto mais velhos melhores. O Fábio não se cansa de se aprimorar, é vaidoso na sua arte de nos encantar e espantar ao mesmo tempo. A Mafalda é uma malabarista de vozes, é um canário e chapim-real: que canto tão agridoce.
Ajax Regressos marcou também o meu regresso às Caldas, quase um ano depois distante deste laboratório teatral e humano, de que tanto sou grato pelo constante aprendizado artístico. Ao Teatro da Rainha a minha mais profunda vênia.
Venâncio Calisto
Tondela, 09 de abril de 2023