Se marcas um traço no chão o que está fora do traço é abismo
Gonçalo M. Tavares
«Cortem-me a cabeça. Cortem-me a cabeça. Está louca. A cabeça». Grita.
Há um caos na rua, mas ninguém pode salvar. Ninguém. Estão todos nos escritórios. Apenas os vendedores ambulantes e automobilistas lidam com as vicissitudes do quotidiano. As ruas degradadas. Emboscadas. E loucos nas ruas.
As pessoas se afastam, assustadas. O homem está de busto nu. Usa barba revolta. A cabeleira emaranhada. Implora para que lhe cortem a cabeça. As pessoas afastam-se, assustadas. Estão com medo. Ninguém aceita cometer o homicídio.
«Cortem-me a cabeça» grita.
Como caminha o vento, o homem dirige-se para um contentor de lixo. Com toda raiva da fome, abre os embrulhos de plásticos, e leva os restos de pasto à boca. O homem cria um caos na rua. Manda parar o trânsito. Os automóveis desobedecem-lhe. Recusam. O homem grita com veemência como que a passar a multa por desobediência.
«Cortem-me a cabeça. Cortem-me a cabeça».
Descalça o sapato da mão esquerda, ergue a cartolina inscrita à mão, caligrafia legível, por um pedaço de carvão «Cortem-me a cabeça. Está louca». O automóvel dispara um estrépito. Não pára. Avança. Num gesto de decepção, o homem abre as mãos para cima, com os braços sujos de gordura, com os braços ossudos quase em asas. Homicídio, não.
O homem reparou nas muitas rodas do automóvel, quis contá-las, e começou a fazê-lo: um, dois, três, quatro, e desistiu, o automóvel foi tão rápido. Então, atrás da cartolina calcula o produto das rodas. Quatro vezes dois. «Oito» grita. «Oito». «Oito».
Por alguns instantes, esqueceu-se de outrora ter pedido para lhe deceparem a cabeça. Mas torna a gritar, «Cortem-me a cabeça. Está louca».
Atrás da curva surge o outro ruído de um camião freight line. O homem acorre-se ao asfalto como um polícia de trânsito com sede de dinheiro na mão. O camião bufa ao frear. A mulher camionista abre o vidro e apura o ouvido ao que o homem grita.
«… a cabeça, corta-me»
O ruído do motor faz o chão tremer. O homem abre as mãos para cima. A cartolina na sola do sapato como uma tigela de tangerinas na palma da mão. A mulher lê as letras garrafais inscritas na cartolina «Cortem-me a cabeça. Está louca». No canto inferior da cartolina, a letra menor, quase ilegível, está escrito: «Salva-me da loucura».
A mulher dobra o cenho, estupefacta. Ou desentendida.
O homem se explica, «foi pela mão que fiquei louco».
«Por que não amputou a mão?» a mulher indaga.
«A loucura é um vírus, tal qual os outros», grita o homem contra o ruído do motor. Ainda descalça o sapato da mão direita. A mulher, estupefacta. O braço, um coto.
Por: Alerto Bia
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