Do Manifesto literário para a democratização do livro e da leitura

Toda e qualquer sociedade que faz de si um projecto civilizacional, intelectual e culturalmente sólido, tem na leitura e na obrigatoriedade moral de ler um dos elementos centrais para construir uma sociedade sã. A leitura não sendo apenas uma habilidade intelectual do homem, é o que o permite ter e aprofundar a consciência sobre si próprio. Por meio da leitura, a pessoa humana compenetra as partes mais profundas dos mistérios que circundam a vida do universo, abrindo-lhe novos horizontes com os quais aprofunda a ideia da emancipação. Ler é uma questão existencial, para parafrasear o filósofo Jean-Paul Sartre, que, sugere que sem ela, os riscos para o embrutecimento ficam maiores. A leitura abre espaço para que as competências para a hermenêutica complexificante fiquem mais aguçadas, e com elas todas as habilidades necessárias para que o conhecimento seja suficientemente incrustado no discurso que qualquer que seja a pessoa humana faça sobre si própria. A deidade da leitura, historicamente falando, está na possibilidade que ela tem de construir os caminhos para a liberdade, para a introspecção, para o acesso ao universo complexo. Sendo a leitura um problema eminentemente humano, tanto no plano filosófico como no antropológico, ela deve ser acompanhada por uma cultura do livro. A cultura do livro sugere que há uma política e prática social clara que faz do livro um dos artefactos fundamentais numa sociedade que faz da sua dignidade enquanto humanos, um problema de primeira ordem.

O livro, já desde a antiguidade, foi um bem que circulou em contextos fechados, elitizados. Fazendo deste um bem elítico, a leitura e a cultura se tornaram bens pertencentes à uma classe social particular, a classe burguesa ou privilegiada, aprofundando assim as desigualdades no que concerne ao acesso ao conhecimento, ao saber. A produção e o consumo literário devem constituir práticas e bens colectivos, cujo acesso seja independente da classe social a que se pertence. Para isso, o imperativo é compreendermos que a democratização da leitura, do acesso ao livro devem constituir os fundamentos morais para uma sociedade que se respeita. A democratização da leitura questiona-nos sobre a qualidade do projecto cultural de uma sociedade. Ou seja, a democratização do livro significando mais acesso aos livros por todos os grupos sociais, mormente, os desfavorecidos, o que fica evidente é que sem a democratização do livro os riscos para a consolidação de uma sociedade menos aberta ao mundo, menos apta a compreender a complexidade da evolução do universo tornam-se características dominantes. O Editor humanista italiano, Aldo Manuzio (1501), defendia que sem uma democratização da leitura e do livro impossível fica fazer uma transformação positiva dentro de uma sociedade. Ele relacionava a democratização da leitura e do livro com as potencialidades de uma revolução cultural digna desse nome. Torna-se, nesses termos, política e socialmente peremptório a necessidade de democratização dos espaços dedicados ao livro, a existência de uma verdadeira política de promoção, subsidiação do acesso  ao livro, assim como de uma política nacional da leitura. Aceder aos livros, à leitura e aos lugares que lhes são dedicados deveria ser um direito fundamental, um direito inalienável, um direito que deve constituir o humus da nossa República.

 

A leitura e o livro devem pertencer a todos, serem bens de acesso fácil, para permitir que se tornem bens populares. Defender a democratização do livro, da leitura e dos lugares e eventos culturais é assumir a responsabilidade de participar na construção de uma sociedade mais culta, mais apta a interrogar, mais integrada na modernidade e contemporaneidade, mais sagaz na procura da verdade, mais sensível a projectos obscuros sejam eles políticos, sociais ou económicos. Defender a democratização da leitura, dos bens culturais por todos é assumir uma luta contra as desigualdades no acesso à cultura.

 

O livro não é propriedade de quem escreve, nem dos que podem comprar ou adquirir, os eventos culturais não são espaços de fechamentos, do l’entre-soi. Pelo contrário, o livro é um bem societal, cujo valor está na possibilidade de ser objecto de consumo massivo. Os eventos culturais são uma possibilidade de pensar, imaginar e resignificar o mundo. A democratização do livro e da leitura passa imperativamente pela democratização da publicação de novos actores e na sua promoção. A integração desses escritores no mercado cultural é assumir que quanto mais livros forem publicados, mais possibilidade existirão de se democratizar a leitura e a consciência da pertinência desses bens culturais. Moçambique não pode mais ignorar que o livro ainda não está democratizado, que a leitura ainda constitui um problema, que o nível intelectual ainda é questionável, até nas classes sociais privilegiadas. Não podendo ignorar esta realidade severa, ostensivo fica que para democratizar o livro todos os meios são úteis, começando pela utilização das novas tecnologias para que o livro seja rapidamente acessível aos mais desafortunados, para que os novos escritores tenham a possibilidade de verem os seus livros rapidamente socializados. Fazer um uso consciente das tecnologias, como já ocorre nos outros países, é assumir que vivemos novos tempos, tempos que exigem uma mudança estrutural tanto na forma como pensamos o livro.

Do imperativo da leitura, do acesso ao livro, do reconhecimento de novos escritores, importante é dizer que se deve defender a cultura do gosto pelo aperfeiçoamento dos cidadãos nos planos que fizemos referência mais acima. Numa época da informação, da economia do conhecimento, a sociedade moçambicana deve assumir as suas responsabilidades e entrar para a época que está em curso com todo o dinamismo, toda a energia vital, para que tenhamos uma sociedade adaptada aos novos desafios que se vive hoje. Fica inadmissível que tenhamos uma sociedade inculta com todos os meios que estão à nossa disposição. O acesso à cultura é um problema eminentemente político. É necessário que tenhamos uma sociedade que respeite o fundamento segundo o qual a leitura, o livro e os eventos culturais devem ser o eixo sobre deve se fundar qualquer sociedade que se projecta como abertura para a complexidade do tempo.

 

Texto: Regio Conrado

Fotografia: Adelium Castelo

 

Texto escrito a convite da CATALOGUS por ocasião da realização do ANONIMUS – manifesto literário, a 27 de Outubro de 2022.

 

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