Estou no Autocarro bar a tomar uma caneca de cerveja. O ritual é este desde que cheguei a Aveiro, desde que embarquei no Corveta Capello, atravessei o Limpopo e na boleia do navio África rumei para Lisboa, qual imperador deposto, deprimido com a insignificância do seu estatuto de rei. O vazio é a sina dos Homens, deve ter pensado o Leão de Gaza quando se viu dentro da desolação, perdido na imensidão do mar, numa viagem sem regresso.
São treze e quarenta e cinco, dentro de um quarto de hora estarei no Teatro e diante de mim surgirão os vivos e os mortos, os lugares e as pessoas que amei e dentre elas não me esquecerei de distinguir Imani, a protagonista desta história que é de todos nós, brancos e pretos, europeus e africanos, nós, humanos.
A palavra humanidade saiu de moda, agora diz-se representatividade. A empatia passou a ser um compromisso tribal.
Estou no teatro, o ensaio vai começar. Hoje é quarta feira, restam-nos apenas dois dias para a consumação da “grande festa do batuque”. O encenador está vestido de Georges, a sua personagem, afinal ele também faz de ator. O Victor de Oliveira é sobretudo um ator, um intérprete exímio, perspicaz e autêntico. E este AS AREIAS DO IMPERADOR é um exemplo disso. Há quase cinco anos que ele pensa este projeto, que agora se materializa em forma de espetáculo, um belíssimo espetáculo, só para sublinhar.
É sublime a interpretação dos atores e atrizes. Ontem, no ensaio da Cena da Bibliana a Lucrécia Paco parecia uma espécie de aparição. Que atriz! Quase esqueço da minha tarefa, vigiar e aparar as gralhas do texto que os atores comentam eventualmente. Fico apenas a olhar, como quem contempla um quadro de Caravaggio, num estado quase sacro, quase profano, quase delírio e quase nada. A vitalidade do seu corpo em cena é impressionante, é uma atriz possuída pelos espíritos da arte.
A arte reside na falta, no espaço vazio que fica por preencher. Afinal uma obra de arte é um diálogo. O encenador acaba de fazer mais cortes de cenas como uma carne que escapa do corpo, mas há que tornar mais elegante o cavaleiro e a dama que se vão apresentar sexta-feira à noite no Teatro Aveirense. O sonho do Victor era fazer um espetáculo de nove horas de tempo. O nosso material de trabalho é uma odisseia, tudo é importante, mas há que tomar decisões difíceis.
Miguel Nunes faz um par romântico com a Sufaida Moyane, Germano de Melo e Imani Tsambe, um branco e uma preta, um amor fadado ao fracasso. A tensão cortante da guerra é muito bem sublinhada com a música de Ailton Matavela, é uma autêntica constelação sonora, onde os ritmos tradicionais moçambicanos estabelecem diálogo com sonoridades de outros portos. Este espetáculo é sobretudo uma nota escrita a negrito e em letras garrafais: o encontro multicultural faz-nos despir a alma, mostrar as nossas feridas e aprender a empatia.
Diante da nobreza de Gaza, o imperador e as suas oito rainhas deportadas, dois brancos se confrontam. O Capitão António de Sousa e o sargento Júlio Araújo protagonizam um dos momentos mais marcantes desta narrativa, duas visões de mundo colidem. O primeiro é um branco nascido em África, para ele as pessoas são como as árvores, nelas só vemos a superfície. Para o segundo os brancos são como pais zelosos e os negros não passam de crianças, incapazes de se governarem. Miguel Moreira e Daniel são os responsáveis por este espanto, uma pancada de beleza, uma chapada de luva branca. Mas afinal, as questões aqui discutidas pertencem apenas ao do século XIX?
A Josefina Massago arrepia-nos com a sua Chikazi, ombros largos e insubmissos, mãe de Imani, aquela que todas as manhãs colhia os sete sóis de Inharrime e enterrava as criaturas celestiais no quintal. A morte do seu filho Dubula, o que se alinhou nas tropas dos Vanguni, leva-a ao suícidio. O corpo dela suspensa na árvore, o tempo que passa na pitoresca luz da Diane. E Katini, uma grande interpretação do Elliot Alex, ali a velar o corpo da mulher. Um homem derrotado converte-se em areia.
Mwanatu é um falso soldado: tem farda farsa, tem arma falsa. Mas o que é verdadeiro neste mundo? É um preto que diz ser português. Um português de pele escura como o Zixaxa. Na cena que antecede a prisão de Ngungunhane o grito do Horácio, embora nos alerte para o pânico e a guerra que aí vem, é de uma beleza que lembra uma sinfonia, a mais bela sinfonia.
Dabondi, uma das rainhas e feiticeiras do imperador, ganha vida através do corpo imponente da Eunice Mandlate. Mal se levanta da esteira e se dirige ao Capitão António de Sousa a sua presença se agiganta, estamos diante de uma deusa no palco. E nesse Olimpo a veterana Ana Magaia ocupa o lugar da rainha-mãe. É a nossa Imani, a mais velha. Está cheia de cicatrizes e não tem vergonha de nos mostrar. Sabe que a cartografia da existência nasce das cicatrizes. Isto nos diz o padre Rodolfo, na voz potente e plástica do Bruno Huca. O Mário Santos, – que faz de Álvaro Andrea, Fragata, Ornelas, António Enes – é o nosso mulungu wa pesado, um ator de fino trato. Que espetáculo!
Intervalo. Saio do Teatro Aveirense e dou-me de cara com um camião com uma grua, na praça ao lado estão a montar uma exposição com as capas do jornal Expresso. No ano de 1993, o ano em que eu nasci, na capa do jornal vinha uma pequena nota curiosa e arrebatadora: Michael Jackson já é branco?
PS: segue-se a agenda de espetáculos em Portugal e a respetiva ficha técnica.
Teatro Aveirense, 07 e 08 de Set. / Teatro São João, Porto. 14 – 17 Set. 2023
Adaptação e Encenação Victor De Oliveira Cenografia Margaux Nessi Figurinos e Adereços Sara Machado Desenho De Luz Diane Guérin Desenho De Som Samuel Gutman Vídeo Eve Liot Música Original Ailton Matavela Pinturas e Esculturas Butcheca Colaboração Dramatúrgica Charlotte Farcet Assistência de Encenação Venâncio Calisto Interpretação Ana Magaia, Bruno Huca, Daniel Pinto, Elliot Alex, Eunice Mandlate, Horácio Guiamba, Isabelle Cagnat, Josefina Massango, Lucrécia Paco, Klemente Tsamba, Mário Santos, Miguel Moreira, Miguel Nunes, Sofaida Moyane, Victor de Oliveira.
Co-produção: En Votre Compagnie, Teatro Nacional D. Maria Ii, Centro Cultural Franco-Moçambicano (Maputo), Teatro Aveirense, Le Grand T – Théâtre De Loire-Atlantique, Mc93 – Maison De La Culture De Seine-Saint-Denis, Malraux – Scène Nationale Chambéry Savoie, Les Célestins – Théâtre De Lyon, Teatro Nacional São João
Apoio: Ministère De La Culture – Direction Régionale Des Affaires Culturelles D’île-De-France, Instituto Camões (Maputo E Paris), La Colline – Théâtre National
Venâncio Calisto
Aveiro, 05 de setembro de 2023