CHÃOS & Outras Arritmias apresenta uma pluridiversidade de tempos,
memórias, de relações entre vida e morte. O amor, o elã vital são, nos dias atuais, muitas
vezes, esquecidos em grande escala; contudo, são tão necessários, fundamentais. Luz e
sol constituem-se como uns dos semas e metáforas mais recorrentes nesta obra, em que
a poesia arde nas letras e palavras de Guita Júnior. Se, em determinados poemas, o eu-
lírico capta cenas de um mundo em decomposição, mergulhado em caos e negatividade,
por outro, apreende lembranças do chão velho, nesgas de luminosidade do luar,
pulsações de amor e umidade da chuva e do mar. Há clara intertextualidade com
Camões em versos como: "amor febre doce que energiza no sangue navega", "fogo que
arde, fogo que não se mostra".
Questionando a contemporaneidade, diz o poema "Colateral" que "a humanidade
não superou o ego", nem silêncios, nem velhos medos. Guerras, destruições, mortes,
"pátrias armadas" e "não amadas", "patranhadas", falsas e mentirosas são apontadas pela
pena crítica de Guita Júnior, poeta melancolérico, cuja poesia contém a indignação e a
melancolia dos justos, o verbo anunciador de desertos, perdas, sombras, desgovernos
interiores e, também, globais. No entanto, simultaneamente, há cores do arco-íris
iluminando alguns poemas do autor. Como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade,
Guita "não quer ser moderno, mas, sim, eterno".
O presente livro é permeado por "fotografias antigas", coisas da infância,
remorsos, territórios ermos, reminiscências pessoais. São "fotoemas" que contêm
lembranças de perdas e de muitos temores: da vida, de dores, da morte, de saudades, de
sonhos inconclusos, de terras úmidas, de raízes do chão, das capas duras dos livros, do
cheiro da chuva, dos silêncios profundos que preenchem a interioridade do poeta.
Silêncio que não é censura, nem pesada solidão. É solitude, encontro de almas a lançar
luz nas sombras, nas dobras da poesia.
No poema "Esta Vida", o sujeito lírico se despede como quem aborta o mundo, só
e clandestino. Seu labor estético faz coexistirem penumbras e claridades, amor e
desânimo, ser solitário e ser solidário com os outros, solidão e solitude, compreendida
esta como ato voluntário e prazeroso de estar só em ações e pensamentos artísticos,
criativos, reflexivos.
Em um dos últimos poemas de CHÃOS & Outras Arritmias, o eu-lirico afirma
que "enquanto o sol arder, seremos tão somente luz". Sol, metáfora da vida, da poesia,
do amor, que, conforme o verso camoniano, é "fogo que arde e não se vê", inspirando,
sempre, poetas de outros continentes e latitudes.
Assim como a poesia de Rui Knopfli e a de Luis Carlos Patraquim, a de
Francisco Guita Júnior é bastante trabalhada literariamente, hermética no bom sentido,
necessitando da análise da força conotativa de suas entrelinhas, de suas metáforas ricas
em polissemias, de sua constante poeticidade produtora de beleza estética.
Em "Arritmia", um dos poemas nucleadores que dá título ao livro, o sujeito
poético se esconde no interior de determinados versos, no silêncio de uma alga ou osga
e, assim,"o amor tem a favor o coração ou o voo ou o chão e é agora que o poema se
recolhe e se cala". Dissonantes ritmos movem as pulsações cardíacas do eu- lírico.
Alteram-se o tom e o compasso da voz enunciadora do poema e também a sonoridade e
cadência dos versos. Fibrilações estéticas produzem uma poesia inovadora, cujo pulsar
atinge outras dimensões, apreendendo emoções profundas da memória. Recordação:
prefixo re+cor, cordis, coração em Latim. Recordar é, por conseguinte, trazer vozes do
chão guardadas no coração.
A palavra "Chãos" também faz parte do título do livro. São muitos os chãos
metaforizados na obra: chão velho, chão de pedra; chão estéril, chão de musgos, chão
das raízes, chão do mundo, chão da poesia. São tantos chãos…, como "uma ilha é um
chão que toma distância e sôdade". Chão, saudade e solidão – recursivos semas na
poiesis de Guita Júnior. Solidão, por vezes amarga e doída, porém, em outros
momentos, transformada em solitude, ou seja, em silêncios criativos, ocasiões em que o
poeta, esteticamente, constrói sua própria oficina poética, como, por exemplo, no poema
"Por Que Chove":
chove
para que os sonhos pousem
a fragrância da terra é uma sombra húmida
que nos invade táctil inteira
e nos toma
então sabemos
somos terra
da janela
que se abre para onde guardo as pequenas
solidões
vejo essa chuva chegar
Além do chão, da água da chuva e do mar, também o ar, os pássaros, o fogo estão
presentes no livro de Guita. Os quatro elementos fundadores da natureza resistem à
morte e à destruição, afirmando vida, apesar de os sonhos, em grande parte, esfumarem-
se, como ocorre no poema "Fogo Velho":
depois pronto
depois os rios ficam vermelho velho
fatigado o sangue a ressecar os olhos
depois o chão dá de si e esfumam-se
os sonhos
o sol põe-se com o vagar dos olhos
depois
oh depois nem há depois
aqui
Guita Júnior, embora assuma um viés poético diferente do trilhado por Eduardo
White,também domina "a engenharia de ser ave", mantendo, porém, sempre, um olhar
melancólico e o propósito de não tirar os pés do chão:
Obviedade
percebes agora
por que somos todos pássaros?
o céu começa no chão
Outro tema estruturante do livro é o tempo. Este se configura como matéria vertente a
alimentar reflexões filosóficas e silenciosas meditações do sujeito poético. São vários os
tempos: tempo-money, tempo-saudade, tempo-deus, tempo-homem, tempo-silêncio, tempo-
poesia:
o homem inventou o tempo
esse grande mestre
e ao tempo chamou deus
para que a morte lhe fosse a sacra salvação
suave e silenciosa
como o voo dos kalahones
O tempo tem segredos, o chão e o coração também, com suas arritmias provocadas por
medos, dores e amores. A poesia é arte de reinventar o tempo, as sombras e a vida, arte de
"empenhar sementes de luz" para o sol, apesar de tantas contradições pelo mundo, não deixar de
arder nas palavras e incendiar melodias em cada verso.
O século XX foi o tempo das massas. Lazeres, desempregos, culturas, ideologias,
partidos, guerras etc… Século da multidão solitária. O século XXI é o das tecnologias, das
solidões cibernéticas. O homem, ser gregário, como sobreviverá em meio à solidão
contemporânea?!!!
Georges Minois, em História da Solidão e dos Solitários 1 , aborda a obsessão dos poetas,
intelectuais, artistas frente à solidão. Segundo o historiador, "a sociedade da autonomia
individual destila solitários depressivos" (MINOIS, 2019, p.410). Também a poesia de Guita
Júnior trata da condição humana, no mundo atual, apontando medos, solidões, perdas e
dificuldades de os homens viverem na luz e na alegria, pois estes, hoje, costumam se dispersar
em busca de uma multiplicidade de interesses narcisistas, de desejos consumistas e de
conquistas materiais.
Tal solidão é fortemente criticada no livro CHÃOS & Outras Arritmias, cujos poemas
remetem à luta pela sobrevivência e pela perpetuação da espécie humana em um mundo, onde
sentimentos, ações e pensamentos de grande parte da humanidade se encontram solitários,
embora conectados (mas, na verdade, desconectados…) no universo virtual da
hipercomunicação contemporânea.
Georges Minois adverte que "sentir a riqueza e o preço da existência requer momentos de
solidão, mesmo de solidão dolorosa, pelo menos melancólica" (2019, p. 489). Os poemas de
Guita Júnior mergulham nesse tipo de solidão e refletem criticamente sobre o assunto, ao
mesmo tempo que alcançam uma dimensão de solitude, ao gozarem do prazer estético. Com
seus corações descompassados por tantas arrtimias, porém inebriados pelas veias abertas do
pulsar fibrilante das palavras poéticas e da cadência palpitante dos versos, os sujeitos líricos dos
poemas palmilham os chãos da poesia e do mundo.
Guita Júnior, na esteira de Knopfli, Patraquim, Drummond de Andrade, Camões, é um
grande poeta. E é, também, não só um atento leitor da vida, da história, das solidões, da
existência, do amor e da morte, mas dos silêncios e solitudes existentes nas entranhas líricas de
sua obra poética.
Rio de Janeiro, 15/11/2022.
Carmen Lucia Tindó Secco
Universidade Federal do Rio de Janeiro