O Judas vai rebentar! É a antiga tradição de queimar o Judas. Com a Primavera instalada, o desejo de renovação expressa-se olhando para o passado recente e purificado pelo fogo tudo o que não se quer guardar. Em Tondela, todos os anos, o Trigo Limpo teatro ACERT apresenta, no sábado de Aleluia, um espetáculo único de teatro de rua com participação comunitária que cruza o teatro,a música, o movimento, o fogo e a construção cenográfica. Todos os anos este espetáculo é construído de raiz, com nova dramaturgia, nova cenografia, de braço dado com a comunidade que nos rodeia e com a qual contamos sempre.
Pode se ler no parágrafo inicial da folha de sala do Judas´23. Aqui está a descrição perfeita deste grande acontecimento cultural em Tondela, um evento teatral que tem o condão de se projetar na universalidade humana que só a arte o sabe ser.
Anualmente, desde os finais da década de noventa do século passado, o Trigo Limpo Teatro ACERT deita abaixo as paredes elitistas dos grandes teatros e leva o jogo dramático à comunidade.
Sábado de sol primaveril. Chego a Tondela na companhia da Assucena Daniel. No parque de estacionamento de Tondela, perto da estação rodoviária ergueu-se um palco gigante, nas bancadas, cabem à vontade mais de mil espectadores. Este ano (2023) participaram mais de 350 artistas, jovens atores, músicos e coreógrafos. O Judas deste ano é o gato.
Um animal majestosamente felino esboça um sorriso sacana posado e manipulado por uma máquina. Os atores fazem de contra-regras e manipuladores da marionete gigante. O Judas é um rato, um polícia da moral e da ética. O Judas é o chefe da aldeia, o chefe de gabinete, o deputado, o chefe de bancada, o chefe do partido, o presidente, o juiz… o Judas é o tribunal supremo.
O rato representa a escorria, o povo na sua mais sublime versão. Há um boneco de rato bem ao lado do gato. O mundo é isto: de um lado o gato e do outro lado o rato. O conflito de classe? O velho ritual da opressão. Tom e Jerry, fiel retrato da epopeia moderna? O Capitalismo a denunciar-se?
A queima do Judas acontece um dia depois da crucificação de Jesus e um dia antes da sua ressurreição. O Judas tem de morrer para que se faça justiça. O Judas vendeu o Salvador do mundo por trinta moedas. A história da corrupção é mais antiga do que se pensa. Os gatos são animais conservadores. Tribais. Perigosos…
Mas o povo não está com meias medidas, hoje o Judas vai arrebentar no fogo.
No clímax do espetáculo o céu aspira fogos de artifícios. A música sobe e a voz de Deus (a voz possante do José Rui Martins) avisa que é chegada a hora. Que todos acendam as lanternas dos telemóveis. O Judas vai rebentar. Uma explosão no palco. O Gato já arde. Agora, do traidor restam apenas cinzas. O Judas é uma fénix. Então, todos os anos, pelas mãos do povo, o Judas vai rebentar!
Vi a queima do Judas pela primeira vez na primavera do ano passado. Ainda guardo na alma o espanto. Que bonita festa pá,fiquei contente: o teatro sempre a andar em contramão. O teatro, na vanguarda do reencontro plural entre a arte e a comunidade. Bem haja, Trigo Limpo Teatro ACERT.
Venâncio Calisto
Alcochete, 16 de abril de 2023