Hoje, no dia Mundial do Teatro os feiticeiros e os aprendizes de feiticeiros da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, a AMOTE – Associação Moçambicana de Teatro e toda comunidade acadêmica e artistas convidados estiveram reunidos nesta manhã para discutir o teatro enquanto um gerador de pontes.
Eu e o encenador Fernando Mora Ramos pelo imperativo da distância participamos desta grande festa do Teatro em modo virtual. Apesar dos constantes ruídos causados pela fraca qualidade da internet (não são apenas as estradas que andam esburacadas e impedem a mobilidade e o encontro com o país) foi possível testemunhar a excelente aula de sapiência proferida pelos oradores Fernando Mora Ramos, Victor Gonçalves, Maria Atália, Evaristo Abreu e Angelina Chavango.
Com moderação de Dadivo José, director do curso e representante da AMOTE, a discussão gravitou em torno do legado de Bertolt Brecht (1898-1956) para o teatro contemporâneo mundial. O dramaturgo e escritor alemão foi responsável pela vanguarda teatral que inaugurou novos paradigmas e transformou as formas de pensar e fazer o teatro no século passado e cujos pressupostos teóricos e práticos ainda hoje influenciam as formas e tipos de abordagens do teatro universal.
A consciência de que o teatro é uma ferramenta importante para a transformação individual e comunitária foi destacada como uma das grandes licções de Brecht. Brecht acreditava num teatro com uma responsabilidade social e política, onde mais do que promover a purgação de emoções colectivas, a catarse Aristotélica busca-se acima de tudo fazer pensar. O espectador não pode ser passivo, pois o jogo teatral não é mais do que um espaço de participação, de emancipação e de libertação do povo.
A propósito desta perspectiva lembrei-me da icônica frase do pai do teatro épico: não és cenário, és acção. Há aqui um apelo para uma participação mais activa e consciente do público perante uma obra teatral. O teatro enquanto a representação do espaço social e daí a necessidade de cada um de nós, artistas ou espectadores, pôr em causa as contradições da sociedade. É um teatro de denúncia, contestação e transformação de mentalidades.
David Abílio, antigo director artístico da Companhia Nacional de Canto e Dança e discípulo de Brecht (estudou teatro na Berliner Ensemble, escola fundada pelo próprio Brecht) intimado a se pronunciar acerca da obra do autor em discussão, sublinhou a importância de iniciativas acadêmicas que estudam e promovem discussões desta natureza. A teoria é resultante da prática, duma prática consciente e regular. Foi a tese mais unânime.
E para quando a dramaturgia moçambicana? Essa foi uma das questões colocadas pela audiência composta por estudantes de teatro, actores e encenadores profissionais e cujo resposta foi relegada à reflexão em torno da história do teatro em Moçambique. Não se pode criar uma dramaturgia nacional sem memória. Dadivo José instigou os alunos, professores e artistas de teatro no geral a pesquisar e sistematizar todo o manancial dramatúrgico que foi sendo produzido ao longo do tempo. Há que desconstruir a ideia de que a nossa história começa com a chegada dos colonizadores às nossas terras. O teatro é tão antigo como a própria humanidade.
Este debate para além de celebrar o dia Mundial do Teatro marca também o renascimento do Colóquio Teatro em Nós, criado em 2016 por estudantes do curso de Teatro na ECA. Esta actividade, que se quer regular e inovadora, convida os estudantes e os artistas no geral a criar um espaço de reflexão académica em torno das práticas teatrais desenvolvidas no país. Como forma de registro e sistematização do conhecimento produzido pelos fazedores de teatro no país.
Termino esta crónica com uma citação extraída da Mensagem oficial por passagem do dia Mundial do Teatro. Este ano coube a actriz egípcia Samiha AYOUB dar voz aos anseios dos actotres, encenadores, dramaturgos e técnicos de teatro a nível mundial:
“O teatro, na sua essência original, resume-se a um ato puramente humano baseado na verdadeira essência da humanidade, que é a vida. Nas palavras do grande pioneiro Konstantin Stanislavsky, «Nunca entrem no teatro com lama nos pés. Deixem toda a poeira e sujidade lá fora. Que fiquem à porta as preocupações mesquinhas, conflitos, pequenas dificuldades com as roupas da rua – todas essas coisas que estragam as vossas vidas e desviam a atenção da vossa arte – que fiquem à porta.» Assim que subimos ao palco, fazemo-lo com a única vida que há́ em nós, aquela que existe num único ser humano. Mas essa vida tem uma enorme capacidade de se dividir, se reproduzir e se transformar em muitas vidas, que difundimos por este mundo, para que germinem, floresçam e espalhem os seus perfumes sobre outras.”
Venâncio Calisto
Alcochete, 27 de março de 2023
Uma resposta
Muito obrigado, Venâncio. Bem colocado.