Comecemos por exprimir uma convicção pessoal antes de falarmos do que o livro seja: prevejo que Névoa na Sala será finalista do próximo Prémio Oceanos. Depende sempre do pântano que cada júri é, mas a probabilidade é muito, muito, grande.
Passemos ao livro: este livro põe em cena três personagens, e é à vez um particular triângulo amoroso e um livro sobre a guerra, sendo que a equação triangular está sempre presente.
Como recurso literário adopta aquilo que desde James Joyce se chama a «corrente de consciência»; aliás, assim se chamam as três partes do livro: Primeira Voz, Segunda Voz, Terceira Voz, e cada uma delas conta a sua versão do encontro entre eles num asilo de loucos.
Dois homens e uma mulher, a Lili.
Que é que estão a fazer num hospital psiquiátrico? Eles estão a curar o stress pós-traumático da guerra, e ela está no stress pós-traumático de outra guerra: a de um cancro que lhe devorou o útero e o filho que nele se carregava. São, portanto, três criaturas borderline que se encontram por acaso “enterrados”, é caso para dizer: num lugar sem sol.
No fundo, são três espectros, no sentido que lhes dá Paul Auster. Para o autor americano todo o humano é um espectro porque, se numa parte da nossa vida nos situamos no centro do nosso equilíbrio psíquico, há demasiados momentos em que flutuamos para os extremos e aí experimentamos não uma sensação de unidade, mas de desequilíbrio, de fissura interior, e os matizes dominam-nos, em função de estados de ânimo, de circunstâncias aleatórias, de fragilidades que não aprendemos a controlar. É o caso destes personagens.
Estes personagens chegaram das suas guerras ocos até à medula, são sacos de ossos com gritos e vozes dentro, as vozes dos que mataram.
O que no fundo procuram eles no asilo para além da pacificação interior?
Procuram que o coração os readmita, que a bateria de intensidades que um coração é reemerja do vazio para que foi atirado, os salve dessa dimensão oca em que ficaram submergidos. O coração que foi submetido a repetidas experiências limites fica como amorfo, incapaz de reagir, congelado como os mortos. É esse o efeito do trauma e pode gerar alucinações. Estes personagens estão à espera de ser exumados ou confirmados como mortos.
Repare-se, a guerra é o território da contingência absoluta. E a contingência significa: o que existe poderia igualmente não existir, a sua existência carece de significado. A guerra atira o homem para a experiência do abismo, do absurdo. Cada homem recrutado para a guerra é um nado-morto. Como se lê, na pág. 31: «Nunca compreendi aquilo, nunca fui capaz de saber porquê o outro era inimigo. Eram gente como nós. Tinham sangue como nós. Eram pretos como nós. Nunca compreendi esse o inimigo». E apesar de não compreender as causas das armas foi obrigado a matar, homens, mulher, crianças, a tornar outros contingentes, a fantasmeá-los. Até perder o seu próprio nome nesse rasto de sangue.
Eis o absurdo que está no centro deste livro, a sua denúncia. Porque neste livro foca-se o Mal: a ausência de boas razões no mundo, entregue aos lances e às situações absurdas. Neste sentido à linhagem deste livro busque-se em Albert Camus, em Céline, que tem aliás direito a uma epígrafe, onde se lê: «Estar sozinho é treinarmo-nos para a morte.»
Depois de sentirem os efeitos da guerra, os personagens masculinos deste trio sabem, ao contrário do que lhes foi incutido para serem soldados sem dúvidas, que o ser humano necessita de contacto, de ser para o outro; que a única hipótese para o humano ser radica na experiência de tentar o amor. Mesmo que seja de forma equivocada, pela violência, forçando. Como um deles o que quer fazer, o que leva a que o seu companheiro, que com ele entrou para o hospício para se apaziguar, volte a matar, matando-o. E desta vez por amor. Para defender Lili do estupro.
Analiza, aquele que é morto, voltará ainda da morte e perpetua-se num gesto também aparentemente absurdo: volta para pedir perdão a quem o matou. É um gesto paradoxal mas tem um significado: ele volta para dizer por outra forma, porque ele nunca dominou a expressão, que os ama.
Neste romance há três vozes, duas têm nome e uma não. Têm vozes Lili, a que é amada, e Analiza, aquele que é morto e enterrado pelos outros dois. O terceiro protagonista ocupa dois terços do romance não tem nome. Isto não é casual. O principal protagonista não tem nome porque é dominado pelas circunstâncias. Está possesso. A circunstância da guerra e a circunstância do amor, ambas, são maiores do que ele. São como que a carne do mundo onde o seu pequeno corpo se embute, minúscula parcela, e que condiciona as suas acções e manipula a sua vontade. Daí que ele nunca aceda a uma plena consciência, a uma autonomia.
Ele ama Lili de uma forma abrupta, abissal. Contudo, como ela diz:
«Os homens quando são amados transformam-se em animais buliçosos. O amor não é coisa comum, quando os encontra, como se os descobrisse em contra-mão, arranca-lhes os pulmões. Surge um desespero vulcânico descontrolável, arrebatando tudo em torno de si, mastigando-os sem dó, sobressaltando-os, animais que se veem diante do fogo sem nunca terem ouvido falar deste».
Os homens amam para finalmente poderem respirar pelos pulmões da amada. Da mesma forma que os animais se fascinam pelo fogo sem chegar a ter palavras para o designar.
E assim são na maioria os homens, arrastados por forças ou doutrinas centrípetas, não têm palavras para designar os estados de possessão que os brutaliza na violência da guerra, e também raramente diante do amor não ficam emudecidos diante das suas sensações, incapazes como os animais de traduzirem uma intensidade crua, fisiológica, num teor discursivo, adulto, que os faça diferir e compreender a acção que os moveu e mostre capazes de denominação. Porque só nomeando as emoções é que os homens as descriminam. Ele fá-la sentir amada mas nem com ela ele consegue aceder ao nome, que mais não é que o auto-conhecimento de si e o primeiro passo para esse estado da intimidade onde começa a sombra do amor.
Daí que ela diga:
«chorava agarrado ao meu corpo, sem dizer uma só palavra. Era o que precisava. De alguém que se agarrasse a mim e chorasse comigo, com a sinceridade de uma fruta que cai por si».
É brutal, porque um fruto não chega à consciência de si, só um ser que ascendesse ao direito de um nome poderia elevar a voz para pedir socorro, “para não cair”. Assim, sincero mas irracional, não pode, cai e passa, transitando da memória para o esquecimento.
Este livro é sobre o Mal, sobre o Mal entre nós – na loucura da guerra e aspereza, quotidiana, interpessoal – e sobre o Amor, como contraponto. É um livro às vezes duro, rude, que não se isenta de descrições violentas. E que não oferece soluções, não aponta saídas, modos salvíficos. E neste sentido seria um livro falho, contaminado em si mesmo por uma negatividade peculiar… isto, se a sua escrita não fosse o contrário do que relata, sumarenta, numa torrente lírica que divaga, em contínua centrifugação, e buscando nexos e ligações entre os corpos e a natureza, novas ressoantes formas de diálogo e de intimidade; a escrita faz suceder nesta novela um fluxo que torna visível como a natureza se conduz numa espécie de pulsão incessante, em contínuas metamorfoses, e onde o que se gera é mais poderoso do que aquilo que destrói. A alegria desta escrita irmana-se com a intensidade do amor, vivifica-o – duas qualidades que obliteram o niilismo.
E Névoa na sala é um daqueles livros sobre os quais podemos contar toda a sua trama que continuaremos a desconhecer o que a força do que é. Porque o que lhe dá substância é a sua escrita, a polpa que contém.
Demos então alguns exemplos desta escrita, tantas vezes não linear mas que segue uma lógica poética que nos faz apetecer continuar a ler. Logo na abertura:
«As vozes dos que matei estão aqui. Aqui na minha cabeça. Aqui, entre o salto de rã e o desmaio de uma cabra. Sempre que sorrio, estou absolutamente perdido entre o recto e o intestino do cavalo.»
Outros exemplos, poucos, que temos de ser breves:
«A noite densa adentrava-se pela boca de um corvo embalsamado»;
«olha para os olhos desse ser que se estende à frente do vento»;
«Levantou-se e foi-se embora, triste como um pavão.»
«Gritei. A voz crescia para dentro de mim. Era uma planta que caía para dentro do seu próprio tronco».
São inúmeros os pirilampos nesta página. Às vezes apanhamo-nos a perguntar: de onde lhe vem estas associações doidas, são elas que dão riqueza imagética à novela.
Uma última nota. Em termos estilísticos, o Mélio recorre muitas vezes à anáfora.
A anáfora é o processo de repetição ou retomada de uma palavra/referente utilizado anteriormente na frase ou no texto.
Às vezes há cenas inteiras que são construídas segundo esse princípio estruturante. Ou frases como esta:
«doía-me tudo, estranhamente doía-me nessa fase a morte de Analiza, não facto de o ter matado, mas o desaparecimento, a finitude, a inexistência, o saber que nunca, que a sua voz nunca, que o seu rosto quadrado e espantado também nunca, que ele sentado no centro do corredor a fazer nada, nunca, que os seus olhos iguais aos de um cão pardacento, nunca, que ele sentado á espera de um comboio que nunca viria, nunca. Isso é que doía. Sentia também um medo, um medo que não sabia explicar de onde vinha, um medo de algo cujo nome não sabia. Isso era pior.»
Neste caso a repetição do nunca dá-lhe uma musicalidade, que subjaz à construção de muitas frases no livro.
E neste insistente recurso à anáfora há outra coisa que se prefigura e que me leva à segunda profecia do dia, devia receber uns dinheirinhos por tanta profecia, vai passar aqui em rodapé o meu número de conta. A minha segunda profecia é esta: Névoa na Sala é uma novela de alguém que se aproxima a olhos vistos de uma vontade de fazer e de escrever para teatro.
E mais não digo sobre este livro excelente, que o melhor é lê-lo.
Texto de apresentação de: António Cabrita