Nguenha, o crocodilo é um documentário biográfico de Malangatana Valente Nguenha. A cineasta moçambicana Isabel Noronha assina a autoria do filme, mas confessa: Malangatana é o verdadeiro autor desta aparição!
Que o pai das artes plásticas em Moçambique é um autêntico deus, ninguém dúvida e com este filme de aproximadamente duas horas fica inequívoca a sua vocação de deus e mestre de todos nós. O documentário filmado em Matalane e nos arredores da cidade Maputo é um retrato fiel da vida profundamente artística, humana e mítica do grande mestre.
Malangatana na primeira pessoa dá-nos a conhecer a sua alma, a sua terra, a sua gente e os seus espíritos num gesto profundamente íntimo. É como se ao acender das luzes da tela adentrassémos na casa de Malangatana e lhe descobrimos os mais secretos segredos. O Homem no cimo dos seus cinco miradouros existenciais narra a odisseia da sua vida.
Ficámos a conhecer a narrativa da sua infância: as traquinices dos meninos da aldeia, pé descalço e fisga a tiracolo, na caça dos xinenyanes cantantes. A sua adolescência povoada de contos e mitos populares. Mudedelene, o monstro sem cabeça governa a noite de Matalane e come os meninos e as meninas mal comportados.
Na juventude foi empregado doméstico na casa do colono. Cuidava de bebés e era o fiel confidente das patroas. Muito jovem conheceu o menino Pancho Guedes, o futuro arquitecto e seu eterno amigo. De Pancho teve como legado a primeira galeria, o primeiro palco, o primeiro público e o primeiro admirador. A sua consciência política trouxe-lhe muitos dissabores. Perseguido e preso pela PIDE, estavam criadas todas condições de temperatura e pressão para o big-bang.
Nacionalista e artista da vanguarda das artes do século XX, Malangatana conquistou o mundo com a sua genialidade e humanidade. Era um artista total, sempre em trânsito, gravitando entre a pintura, o canto, a escrita, a performance e a narração. Era um autêntico contador de histórias. Um sábio. Uma biblioteca viva, um embondeiro, literalmente.
Disse a dada altura a professora Ana Mafalda Leite, durante o debate com o antigo combatente e cineasta Camilo de Sousa, Isabel Noronha, e o professor Pina Cabral. Afinal, estávamos na sessão de visionamento do único documentário que fala sobre a vida de Malangatana, no âmbito do Ciclo Cinema e Descolonização: Moçambique em Foco, que estreou a 5 de novembro de 2022. E é organizado pelo Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (CEsA/ISEG/ULisboa) e a decorrer no ISEG, no Auditório da Caixa Geral de Depósitos (a banca daqui sabe ser mecenas, no verdadeiro sentido do termo). O icónico filme “O Tempo dos Leopardos” de Zdravko Velimirovico foi o primeiro deste ciclo que tanto nos ajuda a compreender com mais clareza a história de Moçambique, finalmente são os próprios moçambicanos os autores e protagonistas do discurso sobre a sua história e cultura.
Chorei de emoção durante toda a sessão. Ver o mestre Malangatana gordo e alegre na tela me varreu o corpo todo de arrepios e nostalgia. Lembrei-me dos meus tempos de menino, preso à televisão, quase hipnotizado pelas entrevistas de Malangatana. Na escola primária, nas aulas de Ofícios e trabalhos manuais encantava-me com o desenho livre. Com a liberdade do lápis sobre o espaço branco, os manhoconhorocoro na folha A4. O professor enfurecido, a chamar-me Malangataninho. O professor a dar-me zero valores no teste e eu contente por ser o discípulo do grande mestre Valente Nguenha.
No fim da sessão fomos almoçar e conviver num restaurante de Goa. Comi uma feijoada de Goa e provei uma bebida indiana. O mestre Camilo de Sousa falou-nos dos tempos da guerra, a infância passada na Mafalala e na Catembe, as aventuras de caça com o Fernando Mora Ramos, o surgimento da consciência nacionalista e independentistas, falou-nos do menino fotógrafo, do comandante de guerra, do cineasta e discípulo de Craveirinha e Noémia de Sousa.
Rimos muito e tiramos selfies. A professora Ana Mafalda leite com os seus cabelos de sol iluminava a sala. O Miguel Luís, o verdadeiro anfitrião do encontro fez-nos as honras da casa com o seu sorriso malandro. O Mélio Tinga sentou-se mesmo em frente da professora Fátima Mendonça e falou-lhe da sua epopeia em Lisboa. Eu e a Isabel Noronha concordamos que o sotaque das mulheres de Maputo é como o canto das sereias.
E já agora, a canção amarga que jorrava da boca de Malangatana no filme, era o prenúncio da sua partida? Como vai o Olimpo, mestre?
Venâncio Calisto
Alcochete, 07 de Maio de 2023