Oh, mãe
mamana mwanga
Estás em tudo| na terra és o estrume
No ar a chama que esvanece
quando tento agarrar
Estás nas flores| nas gotas de orvalho
e quando eu choro| é por ti
que estou a chamar
a saudade é um punhal
no meu peito cravado
e na ferrugem do estendar
apodrece o passado
Mãe, no verão de 2019 eu estava na cidade das Caldas da Rainha, em Portugal. No ano anterior tinha me graduado em Teatro. O teu filho já era um licenciado, o primeiro dr. da família. O teu sonho tinha se realizado. Talvez por isso, no dia da cerimónia de graduação, dentre as milhares de almas inchadas de orgulho e duma arrogante alegria, que só os vencedores são capazes de experimentar, vi-te em cima do palco, toda inteira, de capulana firme na cintura e um sorriso largo e radiante a abençoar o dia. E nesse mesmo instante da aparição lembrei-me do último presente que mo deste antes da tua viagem derradeira: uma mochila de costas ao estilo militar. Coroaste-me um soldado.
Por isso mãe, no verão de 2019 fui às terras dos brancos travar mais uma batalha. O encenador Fernando Mora Ramos, director artístico do Teatro da Rainha, aceitou-me como discípulo. E como em Tous matins du monde, o filme, eu tinha o mestre dos mestres. Foram três meses de estágio na companhia das Caldas, um período de grandes descobertas interiores. Fui pavão, prometeu e corifeu. Escrevi poesia e compus canções. Conheci pessoas bonitas e dei-me a conhecer. E finalmente encontrei a coragem que me faltava para ir visitar-te.
Mãe, neste dia do pai é a ti que dedico estas palavras, o retrato do vazio que a tua morte precoce me legou:
Passam-se vinte anos desde que a minha mãe morreu. Durante muito tempo recusei a aceitar que a mãe partiu para uma viagem sem volta, por isso, passei a fazer de cada dia um cais. A cada nascer do sol uma esperança sempre renovada.
Da janela do meu quarto olhava para o firmamento e tentava romper a cortina azul que guarda os segredos do universo, e o sopro da brisa matinal, era para mim o anúncio cósmico da brevidade da tua chegada. E bastava-me essa certeza para viver. Mas à medida que os anos foram passando, essa certeza foi se transformando no que, na verdade, nunca deixaria de ser, uma quimera de menino.
A mãe morreu. Não se pode fugir da verdade a vida inteira. Naquela farta duna de areia, que nos foi apresentada pelo nosso tio-avô, no longínquo ano de 2003, a mãe dorme esquecida de regressar. E, eu, durante tanto tempo a tentar, em vão, apagar a lembrança daquele lugar na geografia da minha memória, tanto tempo a fugir de encarar essa dor eternamente acesa dentro de mim. Tantas vezes a silenciar a lágrima no grito do poema engolido a seco nas noites medonhas. O reencontro, tantas vezes promessa, finalmente foi realizado.
Era manhã de terça-feira e o céu, de um nublado misterioso, fazia o cenário adequado para o filme de suspense que a minha vida se tornara desde que, no dia anterior, saíra de Maputo com destino a Vila de Mandlakazi na província de Gaza, a tua terra, o teu berço e tumba.
Pernoitei numa minúscula palhota, em casa da minha avó materna, no bairro de Ngoyo-Koyo, a oito quilómetros da vila. E já que o meu amigo, o kota Uiliamo prontificou-se a acompanhar-me nesta excursão de regresso a mim, juntos partilhamos a cama de solteiro reservada para as visitas. Fora a sua dureza e desconforto, o sono demorou-se-me a vir por conta dos constantes e vertiginosos rodopios e sussurros agudos do pintainho que, refugiava-se da chuva na cubata, sem contar com a ansiedade a aquietar-me o espírito.
Logo ao amanhecer, apesar das constantes ameaças de chuva que o céu cinza propalava, e mesmo sem guia, decidi seguir viagem. O destino era a última morada da minha mãe, no cemitério dos Njango’s, sua família paterna, no bairro de Mbonkodane “B”. Foram mais de 23 quilómetros de peregrinação entre a constante e pasmada paisagem povoada de velhos cajueiros e o crepitar misterioso do mato a fazer a trilha da nossa marcha. O norte tinha um nome, madala Binyane. Assim é conhecido por aquelas terras o meu tio-avô, Albino Sathana, o mais velho dos Njango´s. Graças a sua grande popularidade não foi preciso recorrer ao GPRS.
Encontramos o velho no quintal, sentado à sombra de um limoeiro com um dos seus bisnetos ao colo. Demorou a me reconhecer. Foi preciso que me apresentasse para que o abraço de boas-vindas acontecesse. Falámos pouco, entretanto, os olhares e silêncios trocados foram suficientes para edificar a ponte da familiaridade, tanto tempo, adiada. Falei-lhe do propósito da minha visita repentina e não hesitou: trocou de roupa, como um actor veste a sua personagem, encheu uma garrafa de água e ordenou, com uma voz cheia de ancestralidade, que o seguíssemos.
Pelo caminho foi nos contando a odisseia da família, suas conquistas e tragédias: o teu bisavô – meu pai e pai do teu avô, o Venâncio, que morreu soterrado nas minas da África do Sul – foi um dos curandeiros mais afamados e respeitados da região, exímio caçador e soldado, combateu pelo exército Português em Macau e foi amigo de Eduardo Chivambo Mondlane. Apresentou-me, também, as suas terras, hectares a perder de vista, num tom solene que me soava à coroação. Há nobreza no teu sangue! Disse-me sem palavras.
Chegámos finalmente ao cemitério familiar. E entre a meia dúzia de tumbas enfileiradas, a da minha mãe, indicada pelo olhar terno da minha tia-avó, que viera ao nosso encontro. Em jeito de lápide, espécies de cactos floresciam em cada uma delas. Meu tio-avô gabava-se de as ter plantado. A dada altura, com a minha mão, num gesto ritual, percorri o teu corpo tumular, mãe. E tive uma revelação: Existo porque tu exististe, mãe. O céu nunca esteve tão perto. E nunca nada tinha feito tanto sentido. Então compreendi, a mãe não estava ali, distante e quieta, saciando a rectangular e volumosa duna de areia em que todos olhavam enternecidos, mas aqui, aqui dentro de mim para sempre, viva e companheira.
Venâncio Calisto