Houve um tempo em que o dinheiro valia o que realmente vale, nada comparado a amizade dos bons amigos. Esse tempo já passou e hoje há quem te apunhala pelas costas se não fores provido de dinheiro. O dinheiro sucedeu a religião. Da religião o dinheiro tudo herdou, desde o poder supremo aos dogmas dos mais variados tipos. Um milionário está acima de tudo, é uma espécie de semideus, quase antropomórfico, fode com os anjos e fode os homens e as mulheres todas. O dinheiro nos fode todos os dias, às horas todas. No trabalho.
O ponto final não era suposto, mas assim como o dinheiro nada é suposto. O dinheiro habita o lugar do impossível, do surreal, do magnanimo. Ter dinheiro significa possuir uma tocha acesa no interior da caverna. Ter dinheiro é ter luz, é iluminar o progresso e ditar a moda. Hoje em dia os milionários estão a frente do seu tempo. Elon Musk passa férias em Marte e os outros fazem explorações subaquáticas. O Titan implodiu nas águas profundas e geladas do Atlântico norte. Os destroços do Titanic, uma atração mortífera.
E os nossos destroços de homens e mulheres escravos do dinheiro, acorrentados à infelicidade de trabalhar mais de oito horas por dia e no fim do mês contar tostões que mal chegam para comprar um pedaço de terra para o descanso eterno. Há mais ou menos dois anos o Conselho parasita anunciou que morrer passou a ser mais caro do que estar vivo. Os terrenos no cemitério passariam a pagar impostos a dobrar. Até os mortos reuniram-se para a greve, mas os cães raivosos da polícia não deram tréguas. Durante uma semana quem passasse pelo Lhanguene podia ver uma legião de almas penadas a gritar por justiça, apinhados nas grades do cemitério.
Então o mais pobre dos Homens resolveu que nunca mais iria morrer. Mas ser eterno na pobreza é demais. Responderam os amigos entre baforadas de cigarros e copos de mal coado. Era preciso que pensassem numa outra estratégia para contornar os impostos sobre os cadáveres. O anúncio da subida de preços dos terrenos no cemitério e das taxas de enterro e cremação foram feitas durante a pandemia. Superfaturar a morte era a nossa maneira de combater a morte. Disse o presidente do Conselho na conferência de imprensa.
Desde então os milionários passaram a morrer aos montes para provar que só os seus cadáveres eram dignos de tais preços inflacionados. Mas um mundo sem milionários é o mesmo que uma trama sem conflito. Os pobres resolveram retaliar. Passaram a fazer vaquinhas para a morte dos seus familiares e amigos. Houve enchentes nos cemitérios. O Conselho parasita saudou o gesto e prometeu que os preços assim se manteriam para toda a eternidade.
Venâncio Calisto
Lisboa, 18 de julho de 2023
Uma resposta
Cool… Mas estão com a febre do camarada chefe. Vocês quando espreitam o outro lado de lá retornam à casa mais ousados.