Por: Elton Pila
O peixe que sonhava comprar um barco
De carne e sonho
O barco é superfície e o peixe profundidade. O barco, um objecto feito para o mar, é
um elemento estranho às criaturas do mar. «Estranho» no sentido de estrangeiro,
do que não pertence naturalmente a um lugar, mas também sorrateiro, a tentar
apropriar-se do alheio. Talvez daí o sonho anunciado no título cause uma certa
estranheza. E então nos perguntamos, há-de ter este peixe-que-sonhava-comprar-
um-barco síndrome de Estocolmo, apaixonado pelo algoz? Ou há-de ser um
kamikaze a querer chegar ao barco para destruí-lo em nome dos dias de paz, como
se o fogo purificasse o mar? Ou há-de ser um aventureiro a querer chegar em
paisagens que as suas nadadeiras não conseguem chegar? E assim percebemos
que o título que a princípio parece fechado invoca diversas camadas.
Japone Arijuane chega a este “O peixe que sonhava comprar um barco”, depois de
dois livros de poesia (para adultos). O primeiro “Dentro da pedra ou a metamorfose
do silêncio” (Literatas, 2014) e o segundo “Ferramentas para desmontar a noite”
(Fundação Fernando Leite Couto, 2020). Se no primeiro temos um Japone com um
lirismo intimista (ou o que quer que isso signifique, como escreveu Luís Carlos
Patraquim a propósito da poesia de Francisco Guita Jr.), no segundo, apesar de
encontrarmos também este lirismo, temo-lo a olhar mais para fora, talvez no que se
possa chamar de poesia socialmente comprometida, sem colocar de lado o trabalho
oficinal com a palavra que torna as linhas de combate em poesia, em arte. Este – “o
peixe que sonhava comprar um barco” – é a inauguração de um novo caminho, mas
que nos lembra muito o Japone dos anteriores.
O livro devolve-nos a um universo que há muito tem marcado as narrativas
construídas para crianças. O universo dos animais que falam. No caso, animais que
sonham. Ainda que o sonho possa ser entendido como uma tentativa de fala com a
«esperança», o «desejo», o «futuro». O sonho talvez seja uma personificação
humana ainda maior do que a fala.
E esta construção que nos coloca dentro dos sonhos de um peixe, não deixa de nos
lembrar a animação de Andrew Stanton, «Finding Nemo | À procura de Nemo».
Mas, se aquele, apesar de nos dar uma obstinada busca de um pai por um filho
desaparecido, parece um desserviço ao sonho, com o peixe que sonhava explorar
mais do que as águas do nascimento a terminar preso num aquário e a jornada que
assistimos é de um regresso à casa como um Ulisses falhado. Este é um manifesto
ao sonho com o barco e mar como personagens.
O mar, profundo ou superficial, real ou metafórico, é por si só um gatilho para
aventuras que tem no sonho a antecâmara. Este peixe de que não sabemos muito é
feito de carne e do sonho gerado para combater o medo, com reinos encantados. E
também por isso, como nos levaram a descobrir Pedro Pereira Lopes, Angelina
Neves e Maurício Negro, um livro é mágico.
Este peixe sonhava com um barco que o fizesse “livre de anzóis e redes”, que o
levasse a descobrir “sete mares”, que o fizesse sem medo “dos bichos papões”, o
levasse a todos os pedaços onde o Índico tem nome de terra. É poesia, escrita com
as rimas que dão ritmo a leitura, a musicalidade sonhada, a namorar com a
narrativa que se move apenas numa dimensão onírica.
Mas do sonho passamos a desilusão, no futuro sonhado pelo peixe a bordo do
barco mora a agonia, o peixe descobriria (ou sonharia?). “o peixe acabou com a sua
alegria de nadar”, “Um barco, vários barcos, para o cardume um esterco”, “um
sonho que transformou o sossego em agonia”, “um peixe que se proibiu de nadar,
porque queria navegar”, “um sonho a afogar o mar de sonhos”. A literatura se faz do
contexto, do meio em que se escreve e se inscreve. Que imagens estes versos
invocam à nossa memória colectiva recente? E aqui nos lembramos do Japone de
“Ferramentas para desmontar a noite”. Mas isto ainda é Literatura para crianças.
Voltamos depois ao sonho, na sua potência de desejo e de aventura. “a um
sonhador nem gaiola, nem a grade de uma prisão, o pode prender”. E isto vai nos
lembrar a história da águia e da galinha associada a Eduardo Mondlane. É a
literatura infanto-juvenil na sua dimensão axiológica, a sugerir a perseverança que o
sonho exige, o sonho que por si acaba sendo um valor num mundo que parece ter
desaprendido a sonhar. Os últimos versos parecem concluir ao que o livro veio, o
que talvez não fosse necessário, se pensarmos no papel do leitor numa obra
literária.
Walter Zand – que ilustra a obra – estabelece uma narrativa que serve complemento
entre o que se diz e o que se vê, sem a necessidade de tentar decalcar os versos. E
também por isso, este – “o peixe que sonhava comprar um barco” – vale a leitura.