“o pouso do casco” de Lino Mukurruza

Quando me foi incumbida esta nobre, mas difícil tarefa de apresentar “o pouso do casco”, logo me embrenhei entre tertúlias de palavras adormecidas no léxico, na tentativa vã de encontrar o verdadeiro sema da expressão “pouso do casco”. E nada, mas nada do que almejava encontrar transpareceu. Foi daí que me pus a parafusar outras lógicas de escamoteamento do real, as quais me levaram para as nuvens e me devolveram a lucidez literária. E vai ser no contexto desta lucidez que me vou deleitar.

Primeiro, entretive-me com o posfácio de Cremildo Bahule, que diz:

Este livro expõe uma figura do bem-querer

de forma imaginária. É uma poesia de uma

linguagem ludibriada. Manobrar a palavra,

poeticamente, devia ser crime. Porém, não é.

E se fosse? Apesar dos momentos de privação

enunciativa, dubiedade rítmica, Lino Mukurruza

não perde a alegria e canta a benevolência com

e para a vida. Essa poética da mudança e da

aresta do bem-querer encontra-se representado

em toda a extensão e sensibilidade deste livro.

Se os gáudios e os dilemas humanos aceitam

correr em água de cascatas, na sua voz, devemos

assumir que estamos perante uma veia romântica

de observação da humanidade por meio de

conta-fios e sortílegos da poética moçambicana.

E me ative nas seguintes expressões “É uma poesia de uma linguagem ludibriada” [caracterizada por] “momentos de privação enunciativa, dubiedade rítmica”. Estas sábias e ornamentadas qualificações conferiram-me azo e fôlego para considerar “o pouso do casco” uma poesia adormecida em linguagem estilística, desorganizadamente organizada. Impele-me a esta caracterização o facto de Lino Mukurruza se ter apartado das mais elementares regras de formulação discursiva. Há quem esperasse as maiúsculas no início do texto, porém estas foram vencidas pela literariedade; haverá quem reclame a presença de sinais de pontuação entre versos e estrofes, que, no entanto, foram intimidados pela força ilocutória da magia e liberdade de expressão literária.

Este estilo desengonçado dos versos parece encontrar conforto e justificação no poema da pág. 39, onde o “Eu Lírico” qualifica o “vocabulário” como “desenfrono flores caídas”, “mortos grafemas na língua”, “chão que encara cores sem cores”, “linguagem arremedada, matéria putrefacta, corpo decomposto em gomos”, “flores íntimas como equações químicas desacertadas”, “cidade desgovernada [que] empalidece na periferia”…

E o “pouso do casco” continua a navegar, comandado por um “Eu Lírico” ávido pelo bem-querer, que o leva a melancolias e faquezas típicas da alma, como atesta o poema das páginas 11/12:

musgos e flores

rosas e roseiras mecânicas

palavra e poesia manual

engolem pedras que voam em direcção de mãos opostas e

opacas

tulipas clusianas, petunia e cravinas artificiais moldas

com a língua da palavra

esmagam mortalmente uma taça madura de colheita

inteira de uma videira

exprime-se um vinho tinto e branco ou rose dentro de

uma taça humilde inviolável

com ardor dor sangrenta

sinto-te perto taça cheia de amor próprio grosseiro

o sangue ou cheiro a sangue

a teia puxa-me para dentro

inundo-me e prontos

só tudo uma mosca morta

na boca

na palavra

e neste estômago de aranha

vivo no olimpos deste poema e chamo-te

amor flores e rosas caríssimas e bonitas

escrevo-te cartas amarotadas

e belas

e ensopadas

de um amor intimamente este.

Por vezes, o “Sujeito Lírico” tenta desapegar-se do medo, mas é ele mesmo a reconhecer sua imaturidade, conforme nos delicia o poema da página 16:

não tenho medo de nada

estou pregado ao alto

junto a berma de uma nuvem

imagino um arbusto velho

aproximo ao ouvido das flores

oiço música tocada com vagar

silêncio que devora sombra antiga

adormeço nesta coragem imatura

onde junto uma bengala

com sombras do

tronco arbusto antilogismo

que pestanejo,

mão do tempo

e de cada vez

No entanto, a característica mais marcante e contagiante de toda a obra reside no facto do “Sujeito Lírico” se apegar, tanto em objectos e fenómenos da natureza quanto em entidades humanas, para expressão dos sentimentos da alma.

Relativamente ao recurso a objectos e fenómenos da natureza, o “Eu Lírico” fá-lo quer em mera manifestação de admiração à pessoa amada, tal como elucida o poema das páginas 28 e 30:

procuro uma estação de flores

flores verdes e amarelas ou

rosas

ou murchas

dentro de mim

e procuro adicionar no interior da voz

a ruptura de uma casa não habitada ainda

procuro juntar as imagens guardadas

nas paredes

e desenhadas por raios de sol

onde técnicas robustas e antigas

aguarelas ou

acrílico do corpo núcego com o macio da tua pele

absoluta e menos absurda, excitam sua presença

com armários obsoletos e nudez sempre nova e comovente

vasculha o rodopio de cabidos pendurados debaixo do

                                                           teu umbigo

na leveza do corpo nocturno

inauguro um torrão de desejo

imagino sombra no repouso do silêncio

corpo com borbotões do ímpeto

e demoradamente nítido como na flor

beija-flor alcança a essência

porém sem tocar a essência do corpo

alcanço o corpo e o néctar com a mão

 

Quer como a mais alta expressão de legitimação do livre arbítrio (poema da página 47):

Em conceito do livre-arbítrio

eles dão-te o pensar

cores caiadas em ruas ruelas paredes e passarelas cores

                                                                 da cidade

pressinta

porta do teu corpo são janelas portas garrafas quebradas

vidraça envelhecida sobre o véu essa outra fronteira

    entre a tua liberdade

     [vidraça corpo deles

como muros erguidos em reposição de pontes para essa

     e aquela cidade

veja

a águia que em ti flutua vive poema intríseca águia

duvide ide a idade ade mão no silêncio

pombo engaiolado

esvoaçado esvoaça como barco obsoleto de papel voa e

     desaba a rés

e bandeirolas brancas no olhar do teu segmento

são datas pândegas bandeirolas

e bandeirolas ainda

são um protesto que te reinventam envelhecem a homem

esta cidade eleva-te eleva leva leva-te na ideia sagaz

                                                                [tenaz

 

Quer como refúgio em momentos de solidão (poema da página 67):

na solidão solto meu mar íntimo

essa correnteza do medo

por detrás da carruagen do fogo

é como se a alma fosse inferior do corpo a queimar-me

ou uma concha aberta no rosto sobre ondulações em

    folha ao vento

é assim que seguro a escuta interior para ouvir o núcleo

    da alma

essa dor que me chega trasborda-o para fora como

   poros do mar

e sinto um rio aqui

mesmo que periférico coabito na palavra “existir”

que me consola em conchas da mão e fixam-me a solidão

Quanto à menção a entidades humanas, o “Eu Lírico” traz à superfície isotopias de natureza diversa, por vezes, exprimindo metonímia, sendo disso exemplo o poema da pág. 56, dedicado a Manuel de Araújo, mas que pinta em palavras nostálgicas a Cidade de Quelimane.

(ao Manuel Araújo)

quelimane

sinto-te com a língua

a corpo imóvel retida na alma

pés de coqueiros disperso na correnteza

do rosto e dedos que em mim não sai a zalala

ou alma estendida na infância que persiste

a leme, lume da vela a coco nesta cabana

aqui dentro de mim alumia

 

 

Outras vezes, em jeito de dedicatória, tal como traduz o poema da pág. 80, dedicado a Ungulani Ba Ka Khosa.

(ao Ungulane Ba Ka Khosa)

consigo transgredir este silêncio

na palavra madura e cruel

se uma sombra imaginaria

renascesse neste ímpeto

onde Ezra Pound

escutasse um instante da canção de Lawes

eternizava-te neste poema

meio nublado e com aguaceiros

sob a sintaxe do corpo que mistura a água do rosto

com remos das mãos nesta tarde ardente

 

Outras vezes ainda, como forma de exaltação de estoicismo, com recurso a comparações entre as figuras de militar e de poeta, facto que se pode atestar no poema da página 87:

(ao Poeta Militar)

o poeta é um marginal que fabrica espadas com

   palavras

com palavras engole o mar íntimo, único mar que há

    em mim

com palavras configura a inútil sílaba da metáfora

    expelida no poema

com palavras abre as janelas nítidas expeças do teu

    corpo submarino

onde a gaivota perdida nos meus olhos ensaia um voo

             prematuro e exercitado

com a noite dúctil e alargado no verbo do teu corpo

                                                                      aberto

a busca pólo dos dedos no meio do corpo com a música

                                                              diurna

 

Aqui chegados, o auditório teria a tremenda e justificada razão para o seguinte quesito: porquê adquirir “pouso do casco”?

E eu returco: trata-se de uma obra onde se exprime o bem-querer de um “Eu Lírico” tímido, mas astuto; adormecido em cascos de versos ásperos; ancorado em objectos afável e literiamente personificados; enfim, uma obra amiga de palavras.

Escrito por: Geraldo Macalane

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