A poesia é uma forma de conhecimento
Sempre tive essa percepção, de que através dela acedia a uma outra forma de apreensão do mundo. É uma outra matemática que nos multiplica em equações, frases, com resultados improváveis. Uma construção da paisagem pelo olhar e pela emoção. Desvendamos outros planos. Paralelos, divergentes, oblíquos, inapreensíveis. Para os quais é preciso palavras desconectadas do seu sentido comum. Penso que a música é uma das possibilidades de aproximação dessa forma de conhecimento, uma vez que nos transporta. Desloca. Desliza. A poesia abre uma janela ou uma porta, uma frincha, para outra forma de estar. Podemos aproximar a poesia de um estado contemplativo ou quase místico. Que de súbito nos encaminha para outras verdades. Uma espécie de abertura do sentido em diferentes direcções. Não há certezas, nem destinos únicos, mas uma conjunção de possíveis simultâneos. A poesia faz-nos múltiplos, alheia-nos da mesmidade, espraia-nos como o movimento das nuvens, ou a sua mutação de formas lentas, inexorável. A poesia é transmutação. Próxima do silêncio é sonoridade que nos faz ouvir outras vozes que se atravessam nos interstícios de uma frase. Digo: aqui. Além se faz eco, propaga, cresce devagarinho, é já outra voz. Murmúrio. Nascente.
O poema cresce da boca, dos ouvidos, das mãos, do corpo absoluto, da memória, é trepadeira. Vidência. Pressentimento. Aurora. Crepúsculo. Aurora crepuscular. Tinge-se de cores, vermelhos, roxos, amarelos-laranja, violetas, antúrios. É um ramo intenso que voa. Que se oferta e maravilha. A poesia permite-nos aceder à beleza do mundo. À crua dor transfigurada, à sede que nos sacia. A poesia é comestível, alimento, é fome de ser mais intenso. É puro presente, uma tontura, uma embriaguez lúcida. A poesia devora-nos, enquanto nos insatisfaz, transfigura-nos enquanto nos transporta. A poesia é uma forma de viver, de estar vivo. De não estar só e viver estranhamente acompanhado estando sozinho.
A poesia é uma forma de (des) conhecimento.
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Fragmentos de poemas de Adonis
(pseudónimo de Ali Ahmad Said Esber – Síria)
Sobe, ó poeta, às torres da interrogação,
lê o ar do mirto
e exerce os teus lábios no vinho do sentido
*
Palavras – asas para os pássaros que tomam
os sonhos como ninhos
*
Imagens – lanternas para iluminar
a outra face do oculto
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Poeta – não escreves nem o mundo nem o eu
escreves o istmo
entre os dois
*
Poesia – tal como elixir que dilui o eu
nos lábios das coisas
*
Poesia – que não ataca nem resiste
rosa sem defesa
de que o perfume
é a única arma
*
Poesia – nela
o trágico recusa vestir-se
a não ser com trajes de alegria
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Ana Mafalda Leite nasceu em Portugal em 1956, mas cresceu no norte de Moçambique. Fez os primeiros estudos universitários na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde é Professora doutorada em Literaturas Africanas. É ensaísta e poeta. Publicou os seguintes livros de poesia: Em Sombra Acesa (Lisboa, Vega,1984), Canções de Alba (Lisboa, Vega, 1989), Mariscando Luas (Lisboa, Vega, 1992, em co-autoria com Roberto Chichorro e Luís Carlos Patraquim), Rosas da China (Lisboa, Quetzal, 1999), Passaporte do Coração (Lisboa, Quetzal, 2002), Livro das Encantações (Lisboa, Caminho, 2005), O Amor Essa Forma de Desconhecimento (Maputo, Alcance, 2010), Antologia Livro das Encantações e Outros Poemas -1984-2005 (Maputo, Alcance, 2010), Outras Fronteiras, Fragmentos de Narrativas (São Paulo, Kapulana, 2017), Outras Fronteiras ( Maputo, Cavalo do Mar, 2019), Janela para o Índico (Lisboa, Rosa de Porcelana, 2020), A Estranheza Fora da Página (V.N. Famalicão, Húmus, 2021, em co-autoria com Hirondina Joshua).