Esta pergunta não me vem todos os dias. É como a própria Poesia. Nem em plena bendita inspiração, a tal coisa misteriosa que só compreendemos já em transe, isso vem.
A Poesia me chega nas coisas mais feias e horríveis do Homem e do Mundo. Porque visto aos olhos puros, da Poesia, o mundo só pode ser um lugar pequeno, mesquinho, retrógrado, muitas vezes, egoísta e ruidoso. Até as borboletas que sempre souberam à leveza dos seres, hoje parecem pesadas, amargas e desiludidas. Os amantes, que pareciam puras criaturas divinas apenas com vontade de explorar o corpo e os amálgamas da alma, agora não podem fazer o amor imaterial e ausente do mundo. Tudo agora é um factor racional. Vê o peso destas palavras, “factor” e “racional”. Então, talvez, e por isso, Poesia pode ser o inconcreto, o espanto e o suspiro. O que nos vem e nos é sem esperar. Desespero, talvez. Ou devaneio e vagueio, se calhar.
Dito isto, poesia é a Beleza. O que é mais bonito no mundo? A verdade e a honestidade. E, por isso, a beleza que é a verdade e a honestidade, é coisa rara, tão rara que só se pode encontrar na Poesia e na Arte. Tão rara e estranha para um mundo que vive em constante estado de mentira e modismos que não compreendemos e muito dificilmente constatamos a Beleza ou essa Poesia. Dito isto, ainda, Poesia é Transparência, talvez. O que se pode ver entre os três lados da vida, existência, subtileza e resiliência.
A POESIA É:
Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
Sentimento do mundo
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Talvez pudesse ouvir passos junto à porta do quarto, passos leves que estacariam enquanto a minha vida, toda a vida, ficaria suspensa. Eu existiria então vagamente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à obscura respiração dessa pessoa parada. Os comboios passariam sempre. E eu estaria a pensar nas palavras do amor, naquilo que se pode dizer quando a extrema solidão nos dá um talento inconcebível. O meu talento seria o máximo talento de um homem e devia reter, apenas pela sua força silenciosa, essa pessoa defronte da porta, a poucos metros, à distância de um simples movimento caloroso. Mas nesse instante ser-me-ia revelada a essencial crueldade do espírito. Penso que desejaria somente a presença incógnita e solitária dessa pessoa atrás da porta.
Herberto Helder
Os passos em volta
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CÍRCULO
Digo que nenhuma palavra
detém as algemas do tempo,
que nenhuma canção
afoga os estrondos do lamento
que nenhum silêncio
abarca os gritos que se calam.
Digo que o mundo é um imenso pântano
onde submergimos lentamente,
que não nos conhecemos nem nos amamos
como creem os que ainda podem remontar sonhos.
Digo que os poentes se rompem
ao mais leve som,
que as portas se fecham
ao murmúrio mais débil,
que os olhos se apagam
quando algo geme perto.
Digo que o círculo se estreita cada vez mais
E tudo que existe
Caberá num ponto.
Susana Thénon
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Eduardo Quive é escritor e jornalista, baseado na Matola, Moçambique. Tem dois livros de poesia publicados, o mais recente Para onde foram os vivos (2022). Co-organizou três livros, duas colecções de contos e crónicas reunindo cerca de 30 autores moçambicanos e um livro de entrevistas com 25 escritores dos países de língua portuguesa sobre a vivência com a Covid-19. Fundou a revista literária LITERATAS que esteve activa por mais de 10 anos e o movimento literário Kuphaluxa. Desde 2015 que é curador e programador de eventos literários. É co-fundador da plataforma CATALOGUS. Partilha sua intimidade com pessoas de toda a parte através do seu site eduardoquive.com
FOTO: Adelium Castelo