à Áuria, minha irmã
Há infinito tempo venho adiando, perpetuando este momento, recusando-me olhar-te tão de perto. Os teus olhos são mar e eu tenho sina de um náufrago, então porque adiar? Mas acontece que não sei como isso se faz, como me aproximar, olhar-te tão de perto. Não conheço o caminho que leve-me aos teus olhos. Espera, talvez as lágrimas. Vou chorar mais uma vez, quem sabe, finalmente, consiga rastrear-te o paradeiro.
O primeiro parágrafo nunca quer dizer nada, é igual a como me sinto agora, sem vontade de nada, mais inútil do que um poeta. Ontem o Mauro Brito disse-me que desejava se deixar ficar quieto como a dormência de um lago. Repara como os poetas recitam a morte tão docilmente. Mas haverá outro remédio contra o tédio? Eu queria que fosse doce esta vida que tragamos de olhos fechados e vísceras prontas a inchar. Queria que esta vida fosse uma flor fotografada na primavera e que um abraço fosse tudo.
Eu não te abraço desde que eras pequenininha, desde quando tinhas os teus olhos grandes e escancarados pela ânsia de descobrir o teu novo lar. No ventre deve ser tudo escuro como no interior de uma rosa vermelha, tudo escuro de sangue e cheirando a amor. As mães são rosas vermelhas e os seus ventres são o interior de uma rosa vermelha, um lugar escuro de sangue e cheirando a amor.
A mãe morreu nove meses depois do teu nascimento. Nove meses depois de dar-te a luz foi a vez de a morte a parir. A morte, ela engravida de nós desde que nascemos e só fica à espera de um dia para nos expulsar daqui, para nos parir, nos levar a um outro lar.
Não sei o que estou para aqui a fazer, a falar, a escrever, não sei o que te dizer e muito menos o porquê de desperdiçar o meu domingo com isto. Está um dia lindo lá fora, poucas nuvens e o céu quase todo azul, um vento fresco que abana as árvores de quando em vez, e eu aqui, de alma suada, trancado neste pedaço de melancolia (meu quarto).
Falo melhor quando me calo, por isso permaneço quieto por muito tempo, principalmente quando estou em casa, estar quieto ou melhor, estar de boca fechada não me coloca em constrangimentos, falar, articular um discurso é uma arte que precisa de muito engenho, e eu não levo jeito para isso. E depois, porque sou fascinado pela voz da minha consciência, pela suavidade do seu timbre, sua facilidade de falar certo e na hora apropriada e acima de tudo sua discrição. Se os cientistas do nosso tempo pudessem inventar um aparelho que gravasse o que se passa no nosso interior, que pudesse capturar as manobras da alma…
Estou aqui mais uma vez adiando este momento, detendo os passos que me podiam levar a ti, fingindo que o vento não tem força suficiente para me arrastar até ti, até perto de ti e poder olhar-te tão de perto, como o fiz a vida inteira, aliás, quando a vida era inteira para nós, quando nada nos podia abalar e nenhuma distância desenharia um abismo entre nós.
Quando eu ainda te abraçava e tu cabias inteira nos meus braços. Quando os teus olhos eram ainda mais grandes, sempre escancarados pelo entusiasmo da descoberta, as crianças, têm todas, olhos muito grandes, olhos enormes, prontos a engolir o mundo, as pessoas e o futuro. Nessa época, o futuro era um mar calmo em véspera do crepúsculo, tínhamo-lo guardado debaixo das nossas almofadas junto com os nossos berlindes e dormir era uma grande festa, um passe para as inimagináveis aventuras. E nós, sempre heróis dos nossos sonhos, protagonistas dos nossos êxitos, tínhamos a vida e o mundo na palma da mão e para isso não precisávamos ser Putin e muito menos de mandar à merda quem for que seja.
Agora só resta uma fotografia, uma imagem fria, uma memória congelada pendendo-me nos olhos sempre que me recordo de ti. Tens um irmão que te ama, Áuria. Seria muito simples falar-te de tudo com essa frase, mas não o faço porque não é simples e nunca foi tarefa fácil argumentar sobre o nada que sobra quando falta o abraço.
Ao vazio é sempre difícil de sentir a aspereza da sua presença. Tenho somado mais ausências do que presenças, mas tenho o mais forte dos argumentos, a idade. Quanto mais velho se fica, mais solitário nos tornamos. Na infância a solidão era abandono, mas hoje é refúgio. Passo horas a fio trancado neste pedaço de melancolia (meu quarto), quieto por fora e, em caos por dentro. Sofro de crises existenciais (pena que Sartre e Camus não sejam bons antibióticos), penso que a vida não faz sentido algum e a morte é ainda mais ilógica. Vivo sem certezas absolutas, de alma morna, nem quente, muito menos fria, sou uma folha suspensa no ar, entre o chão e a árvore.
A folha só permanece suspensa se o tempo congelar, se a força de gravidade fracassar, se a câmara disparar no exacto momento em que ela cai, cambaleia pelos trilhos do ar e stop: fica retida na retina de quem a vê. Vejo-te crescer com a magia das estações, “o tempo não pára de passar”, disse-o uma vez Vinícius de Moraes, para dizer sentenças como essas, os homens só tem uma oportunidade na vida. Estás hoje uma jovem mulher e mãe, eu à caminho dos trinta anos, e parece que foi ontem que vi-te sorrir pela primeira vez, ontem quando olhei-te tão de perto.
Venâncio Calisto
Uma resposta
Obrigado por partilhat este belo texto, aliás, pelo convite de estar no mesmo espaço, aquele pedaço de melamcolia (teu quarto). Fui teletransportado por dentro as palavras para um lugar igual…
“Quanto mais velho se fica, mais solitário nos tornamos. Na infância a solidão era abandono, mas hoje é refúgio.”
A sua mascara de filosófo, caiu… poeta! Kkk
Que os adultos que somos, encontrem sempre num abraço a criança que mora dentro de si para o proteger da loucura e melamcolia deste mundo…
Um abraço meu irmão Roda.