“Viver dentro da escrita longa” – Eduardo Quive e a residência literária na ĺndia

Numa Sangam House em que já estiveram o escritor português João Tordo, o brasileiro João Anzanello Carrascoza e a americana Julie Iromuanya, importa-nos compreender de Eduardo Quive o que o levou a atravessar para a outra margem do Índico.

A literatura é um campo onde as experiências pessoais e culturais se entrelaçam, moldando a identidade do escritor e a sua produção. O escritor Eduardo Quive esteve na residência literária Sangam House, na Índia, entre os dias 01 e 30 de Janeiro deste ano, onde foi dedicar-se exclusivamente à escrita do seu novo livro.

A palavra “Sangam” carrega um significado aglutinador em Sanskrit e significa “ir junto” e com a pretensão de unir escritores de diversos contextos e cantos do mundo num espaço de tranquilidade e harmonia, juntou cinco escritores de diferentes países, Alemanha, Ilha Reunião, Índia, Moçambique e Sri Lanka.

Numa Sangam House em que já estiveram o escritor português João Tordo, o brasileiro João Anzanello Carrascoza e a americana Julie Iromuanya, importa-nos compreender de Eduardo Quive o que o levou a atravessar para a outra margem do Índico.

O The Jamun, a casa onde residiu na cidade de Bangalore, no sul da Índia, permitiu-lhe mergulhar no processo criativo de uma maneira mais intensa, vivendo em um espaço multicultural, com seis escritores de diferentes origens e línguas, o que ampliou suas perspectivas literárias. Essa diversidade foi uma fonte de aprendizagens, com novas experiências, palavras e histórias, desafiando suas próprias percepções e expandindo seus horizontes culturais e criativos.

 

Diz-se, em Filosofia, que a mente que se abre a novas ideias jamais volta ao seu tamanho original. Em que medida é que a experiência que teve na Sangam House contribuiu para o seu desenvolvimento como pessoa e como escritor?

Precisava de um momento, tempo de qualidade onde poderia dedicar exclusivamente para a escrita. Ser escritor, digamos, a tempo inteiro. E isso a residência literária de Sangam House deu-me. E depois, o The Jamun, que é efectivamente a casa onde residem os escritores do programa de Sangam House é o lugar que deu-me espaço para viver esse tempo ao mesmo tempo que permitiu que o meu trabalho se conduzisse na direcção que eu pretendia. Não se trata de isolar-se do mundo, antes abrir-se para outras possibilidades, encontrar neste mundo uma outra perspectiva, outros significados, estabelecer outros contactos e relações. E tudo isso faz o escritor e a sua vida literária. Imagina uma casa onde há seis pessoas de origens e culturas diferentes, quatro línguas oficiais diferentes! Deves imaginar a riqueza disso, mas também a complexidade, dos sotaques, das expressões, dos hábitos e costumes. Todos os dias experimentamos uma coisa nova. Não houve um único dia em que não conheci algo novo, uma palavra, uma história, uma pessoa, um livro, enfim.

 

Como foi o processo de produção do romance através do qual concorreu?

Pois bem, primeiro devo dizer que tenho medo de falar de “romance”. Gosto de dizer “escrita longa”, depois vemos se realmente sai um romance, depois que passar pelo editor e efectivamente haver certezas do que está lá. Eu venho da escrita curta, da qual tenho muito gosto e prazer. É como diz Jorge Luís Borges, porque escrever em 700 páginas o que pode ser dito em 5? Mas ocorre que desta vez, quando comecei a escrever o que seria um conto, a mão negou-se a parar de escrever. Até fechei o conto e mandei para a publicação onde me haviam solicitado. Mas o corpo, a minha mente, a mão, recusaram-se a dar o assunto por terminado, e fui escrevendo todos os dias mais coisas, mais páginas, fui envolvendo mais pessoas no enredo, o próprio enredo foi crescendo. E cheguei a um ponto sem retorno, em que já não podia nem voltar atrás nem parar. Aí me dei conta que ia já longa a escrita e que com a correria dos dias, se tornava cada vez sofrido escrever como escrevia, com muitas pausas, muitas distrações, todas elas necessárias, claro, mas tóxicas para a escrita longa onde há muito com que lidar, há muitas vidas e problemas por criar e resolver. Foi quando chegou-me a proposta da Sangam House, decidi enviar um excerto e fui aprovado para a residência. É o que precisava para estar eu, as personagens e o enredo. Viver dentro da escrita longa. Viver dentro da encruzilhada, por assim dizer.

 

Nas secções de leitura promovidas ao longo da estadia dos escritores, em que línguas apresentou os seus textos? Se em português, como soube a experiência, visto que a maioria dos autores tem origens anglófonas?

De facto, a diversidade era grande. Para que nos entendéssemos tínhamos o inglês como meio termo. Digo como meio termo no verdadeiro sentido de meio, quer dizer, entre uma parte e outra, há aí uma tentativa de encontrar equilíbrios. Repare, quando um indiano fala na língua inglesa, há palavras que temos de fazer um exercício para compreender, que também tem que ver com a sua cultura, os seus hábitos. Idem comigo, há coisas que tinha de haver pausa e repetição para compreenderem. E depois um alemão, uma francófona, é muito bonito. Quanto a escrita em si, eu escrevo em português. Depois tinha de ser traduzido o texto para que fosse acessível aos outros. A leitura até podia ser em inglês. Mas aconteceu-me depois de ler em inglês pedirem escutar o texto em português. E depois aconteceu fazermos o exercício de cada um ler na sua língua. É coisa maluca de escritores, a tentativa de penetrar nas entranhas do outro, como se nesse exercício procurássemos compreender a dimensão do universo.

 

O que levou de Moçambique para a Índia, e o que trouxe de Índia para Moçambique?

Levei o barulho e trouxe o silêncio. Saí de Maputo num momento complicado, de caos, de destruição, de barulho, de movimento e de uma certa incerteza. Recordo-me de a organização ficar preocupada se eu conseguiria sair do país dadas as notícias que lhes chegavam naquele lado do mundo, as de um país em ebulição. Claro que também devido às crónicas que fui publicando sobretudo na imprensa estrangeira, tinham-me como alguém a quem perguntar coisas, humanamente falando, para além dos números, dos bens materiais. Mas ao mesmo tempo nos jantares e almoços íamos descobrindo muitas semelhanças nas situações sociopolíticas dos nossos países. As democracias estão numa certa decadência em quase todo o mundo. A Alemanha vivia numa incerteza depois da demissão do Chanceler. A França já está numa instabilidade política e até protestos violentos, com um governo instável faz tempo. Sri Lanka tinha vivido aquela “revolução” que deu na invasão do palácio presidencial a que todos nós assistimos e eu estava com uma extraordinária escritora daquele país. Não havia como cada um não levar para a mesa e misturar com os sabores extraordinários da comida as situações vividas pelos países.

 

Que conselho deixaria para os escritores Moçambicanos que se pretendem candidatar para as próximas edições?

As oportunidades estão aí, que de acordo com o projecto literário de cada um podem se enquadrar. No meu caso, tenho interesse nos cenários vividos no Sul Global. Mas a questão mesmo está no que pretende o escritor e depois, de resto, tem que ver com o cumprimento de procedimentos e agarrar oportunidades disponíveis. Muitas vezes em programas como estes, há uma certa desvantagem para autores dos países africanos de língua oficial portuguesa pela questão da língua e, sobretudo, por falta de linhas de financiamentos dos nossos governos para a criação artística. Veja, neste momento na literatura em Moçambique só há um programa de residência literária oferecido por Camões e Câmara Municipal de Lisboa e que acontece com alguma regularidade. É preciso mais. Se já com dificuldades há escritores a produzirem bons livros, imagine-se com um pouco de esforço a nível de financiamento para que os escritores se permitam ter tempo e espaço de qualidade para a criação, com certeza tínhamos muito mais.

 

Texto: Shelsia Roberto

Fotografia: Adelium Castelo

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