Por Jorge Ferrão
Da última vez que fiz uma homenagem ao Ungulani, no momento pandêmico, tratei-o por irreverente defraudador de ideias. Ele não gostou muito. Disse que não era politicamente correcto. Prefere ser Arquitecto de ideias. Refazedor da história. Esse amigo apolítico, agora, preocupado com o mais correcto e sensato.
Não poderia continuar sem antes felicitar o Município da Matola por nos abrir as portas e por terem edificado tão majestoso edifício. Ainda ontem, aqui estivemos e revisitamos a toponímia. Uma viagem aos nomes do país no período pre colonial, colonial e pos colonial. Falamos de tudo menos de poesia.
Não temos locais cujos nomes derivam de poemas. A toponímia parece presa e amarrada ao aparelho ideólogo e poder vigente. Até George Dimitrivov existe na nossa toponímia e Craveirinha, agora no centenário, se revolta e inconforma no túmulo, por tem uma pequena rua e não estar nas escolas.
Parabéns ao jovem Jaime Marandino e seus amigos por este nobre e louvável gesto! Uma pequena luz de esperança num momento de tantos conflitos e incertezas.
De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani.
Cultivo uma inqualificável empatia com este grande talento e dos mais nobres amigos que a vida me poderia oferecer.
Revisitando os emblemáticos escritos do Ungulani e na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escolher a melhor das obras.
Todas elas eloquentes e fascinantes. Uma escrita que reflecte a emancipação da sua veia literária e do talento nato que orgulha a todos nós . Ualalapi, Orgia dos Loucos….. até os escritos feitos em papel higiênico ou guardanapos de mesa são obras de pura arte.
Ungulani representa a libertação do pensamento livre e descomprometido. Emancipação de um povo. Moçambique feito palavras. Escrita feita com amor e por amor. Talento nato e puro.
Privei com Chico, ao longo de décadas, depois, Francisco Cossa, e, mais tarde, como Ungulani. O tal de Ba Ka Khossa. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado nossa amizade e empatia.
Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz.
Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso a negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder fabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor. Arquitecto. Historiador!!!!!
Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Alguém que nos dignifica.
Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, que se assume como moçambicano de todas as origens. Ele é moçambicano de raíz e gema!
Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com às metástases da cultura de cada grupo étnico.
Nesta convocação, homenagem, ou simples testemunho, o revejo como parte das minhas iniciáticas amizades, se quiserem como esse Arquitecto da palavra e das ideias. Assim dito , quem sabe, fazemos as pazes.
Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias. As outras profissões não carecem de descrições.
Nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais.
Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no Ministério da Educação e Cultura. A nossa juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.
Nesta homenagem importa recordar algumas facetas do Ungulani Khossa. O mais sério está associado ao seu cepticismo sobre os caminhos da literatura moçambicana. Sente descaso em relação a insensibilidade sobre as escolas e o que elas tem para ensinar.
Não é apologista de poesia fácil e despida de técnicas, e sem rigor. Existe muita por aí espalhada! Acredita que o ideal seria a prosa e a ficção.
Hoje, já fala da literatura moçambicana com mais paixão e optimismo. Poderia ser melhor, diz nas entrelinhas.
Já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais.
Essas serão as marcas que farão da nossa literatura competitiva e apaixonante. Assim se refere em todas as suas intervenções.
Ungulani tem de ser recordado como autor do consagrado Ualalapi. Esse livro que se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente.
Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas.
Ualalapi foi o livro do apocalíptico império de Gaza com sua virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram e tornaram nossa história relevante e meritória.
Uma dia quis saber quais eram as suas referências literárias. Ele não escondeu. Luis Bernardo Honwana. O escritor colombiano Gabriel García Márquez. Quem não se lembra da obra “Cem anos de solidão”? Considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico.
Quem sabe decidiu mudar de nome por conta do Gabriel Garcia Marquez depois de ter lido a narrativa. Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário.
Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana.
Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.
A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária.
Ungulani se transformou em alguém que recorre ao metaforismos e à magia na recriação de personagens, com tamanha exuberância e fascínio.
Finalmente, Ungulani Ba Kha Khossa fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado e ausência de reconciliação.
Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta. Ungulani, o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas.
Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.
Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra.
Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo.
Somos, como moçambicanos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua.