Vultos- Epílogo

Eu sabia, sabia tanto que o seu amor tornara-se um veneno com o passar dos anos. Dava em excesso e já não conseguia medir, não conseguia diferenciar o que era amor e obsessão.

I.

Momentos de uma ocorrência que nos passam desatentos, fazem o protagonista assumir o papel de um antagonista, em contrapartida, nestes casos, vezes há se não muitas que, o antagonista torna-se um simples figurante, camuflando-se em cenários inexistentes.

Por anos o homicídio dado como encerrado, aberto novamente como uma nova história por se contar. A ideia que nenhum de nós antes concebia. A possibilidade de ter para si algo que não lhe pertence, marcado por rejeições. Quem diria que disto sairia eu ileso. Não tenho certeza que terei a mesma sorte agora, onde quanto mais procurava perceber histórias mal contadas no escuro, mais me perdia da luz para iluminar minha compreensão. Não sou tão adepto a religião, mas sim a existência de uma entidade suprema. Sim, para mim religião é uma coisa e existência da entidade é outra. Religião, é uma crença que o homem abraça, buscando por si métodos para alimentar essa crença, de diferentes formas. Nem todos concordam com as diversas crenças que andam por aí, nem todos seguem à risca, por isso acho isso menos chato. Engraçado pensar nisso, já me deparei com inúmeros casos, absurdos se me permite falar dessa forma, que certas crenças são duvidosas, um tanto que bizarras. Muitas vezes, recebíamos chamadas feitas por moradores assustados ou intrigados com hábitos anômalos em suas vizinhanças. Palavras retidas entre sussurros e zumbidos distorcidos por tremores, alegando que um grupo religioso desestabilizava o convívio normal de todos, descrevendo altos cânticos a altas horas, sons estranhos, luzes a apagarem a acenderem, sem mencionar alguns desaparecimentos de cidadãos, mais velhos, que claramente por conta da sua idade, pouco davam caso da sua falta, só dias ou meses depois. Aí tornava-se mais difícil concluir o caso. Temíamos que sempre pudessem confundir a religião com uma seita, no final tudo é crença.

Agora, falando da existência da entidade, que mal sabemos como é, ou a sua conduta. Como bem disse, religiões são muitas, alegam muitas coisas, rituais estranho e bizarros, mas a existência de uma entidade divina, essa sim assusta a qualquer um. Mal sabemos o que sustenta esta terra. Mal sabemos o que existe por cima dela.

Não sei ao certo que tipo de mal caiu sobre o senhor Oliveira. Apenas sei de uma coisa.

⸺ Então Sarki, qual será o plano para hoje?

⸺ Preciso que me digas o que se concluiu da morte da senhora Paula.

Via as suas sombracelhas se erguerem, sua cabeça abanava, negando de forma antecipada o que provavelmente deveria responder.

⸺ Bem sabes que aquele corpo não existe, o caso foi encerrado.

⸺ Não doutor. Sinto que algo não esta bem.

 

II.

O que podemos definir como loucura?

Apenas um distúrbio ou alteração do funcionamento normal do cérebro.

Não é simples definir o termo. Necessário despirmo-nos de tudo o que achamos como lógico para então, percebermos o outro lado da esfera.

Podemos sim correr alguns riscos. É que a vida tornou-se difícil, isso veio a condicionar muito a conduta do homem, inclusive o que ele tem como princípios… Parece que os anos passaram a estrangulá-lo de tal forma que, ele acabou por tornar loucura o que fala até mesmo a sua própria existência.

⸺ Sabes que te amo, pois não?

Eu sabia, sabia tanto que o seu amor tornara-se um veneno com o passar dos anos. Dava em excesso e já não conseguia medir, não conseguia diferenciar o que era amor e obsessão. Eu abanei a cabeça. Estávamos na mesa, no nosso jantar a luz de velas. Antes de eu me sentar, o retrato que colocava na minha mente era “Tudo como era antes”.

Os pratos colocados nos lugares devidos simbolizavam para mim vida, até certo ponto, um vestígio de vida, do que me restava como família. Desta vez o som ambiente não vinha da televisão e sim do seu playlist favorito, Amy Winehouse. Sua voz potente balançava nossos ânimos, no meio de oitavos fazendo breves mudanças, ao tom mais baixo ao alto, num contralto insólito. Como se, ao mesmo tempo, nos quisesse apaziguar levando-os para um estado de guerra.

Notava seus dedos a mexerem discretamente sob a mesa, me parecia gostar da música.

 

Meet you downstairs in the bar and hurt

Your rolled up sleeves in skull T-shirt

You say “what did you do it with him today?”

And sniffed me out like I was Tanqueray

 

Enquanto colocava a comida que havia preparado com tudo aquilo que eu era e devia ser. O homem de sua vida. Momentos antes, o cozinhar parecia uma terapia, reflectia o que havia decidido para o resto dos meus dias. Estava a minha frente.

O seu sorriso engolia meu temor. Seus enormes olhos me despiam do homem que era. Cruzávamos olhares, bebíamo-los, fazíamos deles nossa refeição. Nosso primeiro encontro replicado.

A idade me passava à conta, mas não era o caso dela. Corpo ainda jovem, feições inofensivas. Não demos conta que caminhávamos ao ritmo daquele fundo. A comida esfriava. Os nossos corpos aqueciam. Nossas faces entravam num processo estranho de fusão.

 

Sweet reunion, Jamaica and Spain

We’re like how we were again

I’m in the tub, you on the sink

Lick your lips as I soak my feet

 

As suas mãos passeavam pelo meu pescoço até a minha nuca. Natureza humana nesse momento era o que podia justificar o que sentia por ela. Estava prestes a ser lançado para outra órbita, por nós tão bem conhecida. Um tipo de propagação vegetativa dar-se-ia lugar. Nesse processo tudo o que eu era, ela era.

Encarei os olhos que tanto gostava de ver. Notei que as cores haviam mudado. Sua luz… Meu toque. Meus sentidos. Tudo embaçado. A única coisa que conseguia fazer era ouvir, ritmos dos nossos passos. Ritmo do meu coração prestes a parar.

⸺ Vais me perdoar querido. Eu te amo. Eu amo os nossos filhos. Mas não dá. Preciso levar-lhes para um lugar. Um mundo imaginário, longe de tudo isto. Tu vais gerir o teu mundo aqui. Sinto muito.

 

I cheated myself

Like I knew I would

I told you I was trouble

You know that I’m no good

 

 

 

III.

A verdade é uma e única. O mais assustador é que ninguém sabe ao certo que verdade seria essa. Anda as voltas, tentando pedir exílio as mentes estrangeiras, que não tinham medo daquilo que os esperava. Uns negavam, com medo do que poderiam ver depois, outros aceitavam com certo percalço e para que não deixassem a verdade sair dos seus limites, acorrentavam-na, limitando sua liberdade. Outro a deixavam livre pouco se importando das consequências, do caos que seria levantado por meio dos anúncios dados pela verdade.

Ainda sobre a loucura; não é suficiente aceitar que é uma forma de distúrbio ou disfunção cerebral. O homem na sua universalidade e diversidade apresenta curiosas condutas, onde por si adopta formas ou princípios de modo à direccionar os outros, a saber, estar e ser. Quando esta conduta não é observada por um grupo específico, pode-se dizer que se rompeu com a normalidade, o que tomávamos como certo para esse grupo especifico, não é. Curiosamente, estes nem sempre podem ser tomados como loucos ou de conduta desviante. A história é a evidência clara que muitas vezes, loucos eram verdadeiramente tratados como sábios, estando em outras épocas, esta sabedoria estava ligada a uma essência sagrada, sobrenatural do bem ou do mal.

A grande questão é: Estaria a verdade solta nessas terras anunciando loucuras?

 

CASO DE HOMICÍDIO VOLTA A ANÁLISE.

DEPOIS DE DOIS ANOS SEM ANDAMENTO, O CASO DE UM HOMICÍDIO CULPOSO ENVOLVENDO UM PROEMINENTE BOTÁNICO, CONSIDERADO AINDA COMO SUSPEITO, ACUSADO DE MATAR OS SEUS FILHOS E ESPOSA, CUJO CORPO DA MESMA ENCONTRA-SE DESAPARECIDO, VOLTA A SER ABERTO

(…)

Recordar que para muitos o casal era conhecido por ser uma figura que aspirava uma união familiar forte no círculo social e profissional. Tadeu Apolinário de Oliveira, de 54 anos, botánico de profissão, conhecido pela sua grande colaboração e patrocínio a uma expedição que reuniu mais de 100 cientistas na descoberta de espécies diversas de plantas em vários países do continente africano.

O cientista é o suspeito principal da morte dos seus três filhos e da esposa a psicóloga Paula Sara de Oliveira de trinta e três anos de idade. Os três filhos do casal foram encontrados parcialmente esquartejados na casa-de-banho, evidências fortes sustentam que, os menores foram atacados enquanto dormiam, com um instrumento cortante ou perfurante (…). Ainda na cave da casa foi encontrado um corpo carbonizado e ao redor garrafas vazias de gasolina. O corpo estava em elevado grau de destruição, facto este que impossibilitou a perícia de fazer de forma imediata o reconhecimento facial da vítima, inclusive obter as impressões digitais da mesma. Porém, fortes suspeitas por parte da opinião pública, apontam que o corpo pertence a mulher do…

 

A notícia passeava como filme na minha cabeça. Para mim não fazia sentido. Queria respostas.

Há dias que minha mulher tem recebido chamadas, como se alguém não estivesse na linha. Como se soubesse para quem queria ligar, mas não para falar nada, apenas ouvir. Tinha cá uma paciência em ouvir a pessoa anónima. Linda sempre desligava, depois de algumas vezes passou a não atender.

Algo me diz que há uma conexão. Queria muito descobrir que conexão era essa. Precisava ter a certeza.

 

     É triste quando a nossa curiosidade custa-nos a vida.

Voltamos ao famoso dilema: Verdade.

Apesar de todas as mentiras que existem por aí, sabemos de uma coisa. A verdade está viva, segurando uma arma e anunciando caos, por onde quer que ela passa. Bem atrás de ti.

Desta vez não fingirá morte.

 

Por Maya Ângela Macuácua

Escritora, autora do romance “Diamantes pretos no meio de cristais” (Prémio Literário Fernando Leite Couto, 2022).

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Este texto tem parte I, II, III, IV e V.

Pode ler aqui a Parte I 

Pode ler aqui a Parte II

Pode ler aqui a parte III

Pode ler aqui a parte IV

Pode ler aqui a parte V

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