Parte II
O ambiente parecia meio isolado, mas não era grave. Podia-se aguentar por mais dez minutos, mas tu nunca sabes o que poderá acontecer no pequeno intervalo de segundo que separa um minuto do outro.
Quando tinha visto a porta abrir-se, a cara derrotada do Carlos serviu-me de um sinal bom e mau. Eu gostava de desafios, alguns pareciam promissores e outros pareciam não tão certos de si. Não podia dizer o mesmo a respeito do Carlos.
‒ Esta foi a última gota de água. Ele é todo teu.
Havia passado pelo lado sem sequer parar para tentar respirar o ar que o faltava e recompor seu estado. Percebi em seus olhos cansados e em alguns fios de suor que caiam de sua testa, que desta vez, não tivera nenhum sucesso. Eu respirei fundo e passei a mão sobre minha cabeça. Óptima noticia não teria melhor do que esta. É que na verdade, eu sou um senhor que acredita de forma resoluta que ainda tinha muito que dar nesta vida e se essa fosse uma das últimas chances que teria, não a deixaria escapar das minhas mãos. Sou um senhor que ainda acredita que nem sempre seja imprescindível ter resposta. Na verdade poucos se apercebem que ela está lá, por menos hipóteses que um determinado problema aparenta ter, sempre haverá uma brecha onde a evidência denunciará uma acção, contando de seguida uma história com contornos interessantes e sinistros.
A desistência do meu colega deu-se há duas semanas, eu tive duas semanas para acompanhar de perto todo o processo. A quem estou a enganar!? Para ser sincero, para os meus compatriotas que sabem o quão teimoso e curioso sou, eu já estava atento a este processo há dois anos. Foi dado como encerrado há nove meses. Não sei quem deixou os dados soltos ao chão, só sei que voltou-se à jogada. O tabuleiro ainda estava intacto, restavam as peças e as suas devidas posições. Posso confessar algo? É sempre difícil perceber o jogo pelo meio, melhor seria acompanhar o início e se possível o que ocorreu antes do início. Para tentarmos idealizar o provável fim.
Sempre soube que o meu olhar era fixo. Nem sempre era com a intenção de intimidar a pessoa, mas compreendê-la, estudá-la. Muitos cometem o erro de falar coisas desnecessárias e de forma precipitada. Péssima jogada! Antes, observe. Compreenda. Estude mais a fundo. Só depois as palavras certas poderão sair da sua boca. Por poucas que elas sejam, não deixam de ser palavras, ainda mais com sentido.
Depois da saudação, o silêncio habitou o lugar. Eu então acompanhei o ritmo do silêncio até decidi-lo largar.
‒ Eu compreendo se não quiser falar muito no momento. Desta vez, não teremos questões.
Ele continuava com os olhos para a mesa, como se não mais importasse se faria alguma diferença estar nesse lugar. A verdade é que não fazia sentido ele estar ali.
Eu permaneci mais alguns segundos buscado encontrar algum vestígio de vida em sua cara. De seguida levantei-me e sai, encostando a porta que dava acesso a sala.
Voltei para o compartimento base. Caras espantadas, curiosas e insatisfeitas me saudaram. Eu calmamente retornei ao meu lugar.
‒ O que acabaste de fazer?!
‒ Vá lá Mahmoud! Mantenha calma.
‒ Manter que calma?? Nós temos um protocolo de procedimento que deve ser seguido a risca!
Eu não tinha tempo para discussões, aliás não me dava o tempo para tal. Existiam outras prioridades. Conseguia sentir o fervor dos seus nervos tocando minha pele, pequenas gotículas de sua saliva molhando parcialmente o meu rosto enquanto falava mais algumas coisas que não me dei o trabalho de compreender. Eu apenas olhava para frente. Quando percebo no ângulo da minha visão algo estranho a acontecer, um pequeno e suave movimento. Meu ouvido imediatamente é abafado por palavras secas e grossas. Minha paciência tem os seus dias de actuação. Devo dizer que estes é um desses dias.
‒ Onde pensa que quer chegar com isso?!
Via em seu olhar fúria, falta de paciência e ansiedade. Depois de quarenta anos neste tipo de trabalho, ainda me questiono como conseguem permitir a aderência de um homem cujo carácter deixa a desejar ao tratar assuntos sensíveis.
‒ Mahmoud. Veja.
A atenção não mais estava em mim.
Conseguiam perceber movimentos embora leves, vindas do outro lado da sala. Ele mexia um pouco os seus pés, levantava a sua cabeça para olhar ao redor. Não como se despertasse para um mundo inédito, mas como se lamentasse esse mundo. De certa maneira percebi a sua dor.
No final de tudo, ele foi dispensado.
Mas tive uma resposta, apesar de ter sido pouco compreendida pela minha equipa.
‒ Muito bem, poderá então justificar-se senhor Laboso?
‒ Eu simplesmente fiz o necessário.
Na minha visão periférica, via a cabeça do meu colega abanar impacientemente. Procurei não deixar que isso me afectasse, apesar de demonstrar a sua insatisfação eu o percebia, mas era a hora de largar os ditos protocolos.
‒ Esta investigação tem mais de dois anos, temos claramente um procedimento por cumprir e prazos estabelecidos para relatarmos os resultados. Este caso é sensível, muito foi gasto sem evidência alguma. Precisamos ser precisos com os nossos procedimentos senhor Laboso.
O tom de sua voz era fleumático. Devo dizer que era tudo o que precisava para tomar a palavra seguro de mim, seguro dos meus planos.
‒ Com o devido respeito Comandante, eu verifiquei que os procedimentos estabelecidos de facto não produziram os seus resultados. Tendo sido eu chamado para prosseguir com as investigações, vi que era sensato mudar o estabelecido.
‒ Sem o meu conhecimento? Todos os passos devem ser reportados a mim.
‒ Lamento pelo sucedido.
Mahmoud interrompeu. O seu tom sarcástico aparentava ser de derrota.
‒ Tens a certeza que lamentas? Se lamentasses imaginarias o que poderia ter acontecido por conta da tua negligência.
‒ Não foi um acto de negligência.
‒ Prove-me o contrário.
Eu fiquei calado e não mais respondi. Preferi não respondê-lo. Em contrapartida, ouvi um profundo respirar do Comandante, ele olhou para mim e respondeu.
‒ Estão dispensados. Sem mais a considerar, pode prosseguir com o próximo encontro senhor Laboso, a ser feito sob uma diligente supervisão.
‒ Com todo o respeito. Creio que seja por esse mesmo motivo que dificilmente conseguiremos chegar a um resultado. Sugiro que se mude a forma como tudo está a ser feito.
Vi os olhos de Mahmoud abertos, incompreendidos e confusos. Não me apanhou de surpresa a sua reacção. Previa isso, na verdade, atitudes um tanto que radicais provocam um desconforto não é verdade?
‒ Que forma seria essa, senhor Laboso?
Questionou o Comandante curioso, eu respondi.
‒ Em um lugar vivo, não morto.
Onde as sombras não afectariam a visão de nenhum dos dois, onde nem mesmo o espaço pudesse estar limitado por paredes de cor fria e por uma luz difusa que há muito reclamava por substituição.
As horas se passavam. Saberia que neste dia voltaria tarde a casa.
Recordo-me de algo bem engraçado agora, mas que na altura havia sido um motivo de constantes discussões. Linda pedia que não levasse assuntos do trabalho para casa, existia um lado da vida que ela não queria voltar a ver, um certo temor do que um trabalho pode vir a fazer na mente de alguém. Ela sabia que eu lidava com assuntos sensíveis, por isso não queria que isso pudesse interferir com o meu papel de esposo e pai. Passados anos, ela tinha razão. Soube fazer o meu papel.
Esperava que desta vez também conseguisse fazer.
O som morto das ruas, o frio penetrando os cantos da enorme sala, passando por cima de pequenas escrivaninhas, luzes dos monitores desligadas. Eu era o único na sala, com os olhos atentos ao tecto, respirando fundo a cada segundo para tentar perceber onde iria me meter desta vez. As palavras em negrito encravadas no jornal, agora passavam visíveis na minha mente.
“ CASO DE HOMICÍDIO VOLTA A ANÁLISE.
DEPOIS DE DOIS ANOS SEM ANDAMENTO, O CASO DE UM HOMICÍDIO CULPOSO ENVOLVENDO UM PROEMINENTE BOTÂNICO, CONSIDERADO AINDA COMO SUSPEITO. ACUSADO DE MATAR OS SEUS FILHOS E ESPOSA, CUJO CORPO DA MESMA AINDA ENCONTRA-SE DESAPARECIDO...”
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Pode ler aqui a Parte I
Texto de: Maya Ângela Macuácua
Foto de: Marcos Vieira