Vultos III

O medo e o prazer. Existe algum tipo de dependência entre os dois? Talvez. Devo dizer que ao contrário do que se diz o medo nem sempre é um sentimento que te afasta de um perigo eminente. Existem casos em que o medo é acompanhado por uma sensação estranha de adrenalina, querer fazer mais...

Existem coisas que a vida nos revela serem fúteis e procurar medir esforços para percebê-la ainda é um desperdício de tempo.

Sempre a procura de um lugar de refúgio da minha própria condenação. Peregrinando em altos terrenos, de modo a abalar quem me procurava. Com diligentes passos de modo a não despertar potenciais bestas que se camuflavam de uma forma estranha, imitando hábitos humanos, artifícios estrondosos de fazer qualquer um enganar-se diante do seu julgamento. Eu fugia todos esses, a caminho do mais alto cume da montanha. A caminho da minha salvação. Minha libertação.

Eu não confiava em ninguém. Contudo, eis que um senhor, cujas palavras despertaram em mim um sentido de… Ponderação, fazendo-me reflectir o meu posicionamento. Não pude conter. Fixei o nome dele na mente: Sarki Laboso.

Em meus momentos de leitura procurava imaginar como seria descrever alguém com a sua postura? Como seria fazê-lo participar numa história, na qual ele certamente não teria controle do seu futuro?

Novamente estávamos juntos depois de alguns dias. Mas não era o mesmo lugar. Era diferente, mais amplo. Mais vivo. Quer fosse pelo sim ou pelo não, devia estar atento.

Sentei-me e sinceramente pensei que talvez fosse um acto de negligência do jovem que cuidava de mim, eu não estava algemado. Estava com as mãos livres. Estava livre.

‒ Espero que esteja confortável senhor Oliveira. Quer alguma coisa para tomar?

Achei estranho. Pela primeira vez, nunca me aconteceu isso. Nunca me perguntaram se estava confortável, se precisava de alguma outra coisa. Certamente estava a manipular-me. Mas não iria ceder.

‒ Bem, eu queria que desta vez, pudéssemos tomar um novo rumo, na conversa. Espero que isto possa ajudar. Estou disposto a andar no seu tempo, senhor Oliveira.

O meu tempo parecia moroso. Pois ansiava tanto pela Morte que acabei por desistir, de forma aparente. Queria que ela me encontrasse distraído, como acontecem com os outros.

Desta vez, o lugar me compeliu para mirar. O chão verde, a relva parecia como um tapete natural aquele ambiente, o céu embora nublado, acrescentava um detalhe único ao dia, onde os raios do sol transpunham as nuvens de modo a percorrer em segundos o caminho para se precipitarem numa terra estrangeira, que não os conhecia. Pois nenhum raio de sol volta ao sol para relatar o que aconteceu em terra, simplesmente permanecem onde caíram, servindo o seu propósito. Neste mesmo dia, o meu amigo há muito desaparecido retornou. Não sei ao certo por onde ele havia se metido. Mas a sua aparição, remendou a minha postura.

‒ Velho amigo.

Percebia a sua postura quando havia pousado em um dos ramos de um Flamboyant, absorvendo o ar que o cercava, elevando o seu pecho, batendo suas pequenas asas como quem quisesse defender um território. Talvez percebesse que eu estava em perigo.

‒ Desculpa senhor Oliveira. Estava a falar algo…

Interrompi-o de imediato.

‒ Um pequeno pássaro canoro com um longo bico curvado para baixo. O macho é enegrecido com áreas iridescentes: coroa brilhante esverdeada ou azul, e ombros, garupa e cauda brilhantes azuis. Conhecido cientificamente como Amethyst Sunbird. Conhecido pessoalmente como, Velho amigo.

‒ Creio que ele simboliza algo especial para si.

‒ Devo dizer, uma parte de mim está nele.

Parte que nunca me pertenceu, mas sabia que algures nos contornos deste rígido corpo humano, essa parte existia, tão certo como o chão que piso.

‒ É interessante como os animais também ensinam o homem como deve viver. Vi isso por aí. ‒ Novamente ficamos no silêncio, apenas contemplando. Apreciando. Sem ninguém por perto. Devo confessar, que fazia tempo que precisava de algo assim. Não apenas da companhia de histórias de grandes escritores, mas de pessoas vivas a serem enganadas constantemente pela vida. ‒ Concorda?

Eu fiquei no silencio. Não queria responder a questões filosóficas. Permaneci com o meu olhar fixado no meu Velho amigo. Decidi não pensar em nada, apenas, tentar…

 

É como se tudo tivesse sido um sonho. Existiam dias que não conseguia recordar eventos passados. Tentei compreender o que me levou para o jardim e falar com o senhor Sarki Laboso. Não percebia o motivo, mas sabia que tal facto havia ocorrido com vagas ideias de como tudo poderia ter terminado.

De volta ao meu livro favorito, Gato Preto[1]. Fez-me reflectir algo que sinceramente nunca havia me dado o tempo para pensar. O medo e o prazer. Existe algum tipo de dependência entre os dois? Talvez. Devo dizer que ao contrário do que se diz o medo nem sempre é um sentimento que te afasta de um perigo eminente. Existem casos em que o medo é acompanhado por uma sensação estranha de adrenalina, querer fazer mais, mas não puder fazer por conta das consequências graves. Chegando por último, uma fase onde o medo torna-se de forma excepcional, uma consequência insignificante do que um bom prazer pode providenciar. A loucura em alguns casos é levada ao debate. Uma mistura heterogênea de sentimentos. Era suposto o medo estar relacionado a algo horrível e o prazer estar relacionado com a alegria. Contudo, da mesma forma que existem ápices no universo desconhecido, onde a lua bloqueia o sol, criando um fenômeno anômalo na natureza, o mesmo acontece com a mente humana.

Para a minha triste alegria, querendo fazer parte deste tipo de fenômeno anômalo da minha história, mais uma vez, em um dia de céu nublado, onde o calor relaxava os nossos nervos e o leve soprar do vento erguia nossos egos, estava sentado com o senhor Sarki Laboso. Da mesma maneira, ele também me insistia em chamar de senhor.

‒ Como tem passado os seus dias senhor Oliveira? ‒ Talvez respondesse pela minha expressão facial “Estou a tentar viver”.‒ Alguns dias atrás estava a conversar com alguém muito próximo de mim a respeito de enigmas. Ele disse algo que ficou cravado na minha mente até agora.

Não pude deixar de ficar curioso também. Talvez essa pessoa soubesse o segredo para dizer um último adeus à vida. Era a minha oportunidade de tentar ficar mais atento.

‒ Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a e eventualmente todos acreditarão nela. Adolf Hitler. Em pelo menos nisso ele tinha razão. Coloquei-me a pensar e se tudo não passar de uma mentira, uma ideia elaborada da mente que estamos a viver uma vida.

Não chegou tão perto, mas a pessoa ao menos tentou. Infelizmente tem muitos que percebem isso tarde. Uma leve massagem na minha garganta de modo a tirar algumas palavras que pudessem servir de consolo para a desolação do homem que estava ao meu lado. Nunca pensei que pudesse voltar a fazer isso, ainda assim, fiz.

‒ O que tomamos como verdade certamente pode ser uma mentira. Mas quem estará do outro lado para provar o contrário?

Ele olhou para mim e disse.

‒ Alguém mais superior que nós.

‒ Pressuponho que acredita em um Deus.

‒ Se preferes colocar desse jeito, sem problema, mas tudo deve partir de um ponto. Uma mente que arquitectou isto tudo. Acredito que percebes.

Ouvindo essas palavras, a vontade de não mais falar estranhamente havia desvanecido.

‒ Porque estou aqui?

‒ Senhor Oliveira.‒ Ele fez uma pausa. Percebi que ele não tinha receio de dizer o que pensava, o seu entusiasmo e sorrisos falavam mais da sua personalidade que as suas pobres tentativas de desenvolver uma conversa saudável comigo. Desta vez, compreendi que as suas palavras estavam a ser bem processadas, antes de serem expulsas pela boca. ‒ Eu simplesmente quero percebê-lo. Acredito que saiba de algo que eu não saiba.

‒ O que faz ter tanta a certeza disso? Eu estou aqui. Não basta?

‒ Algo não está certo. Não estou habituado a ser convencido por meras provas.

‒ Se as provas não o convencem quem serei eu para respondê-lo? Veja onde estou.

Num hospital psiquiátrico, tentando perceber o rumo do que muitos chamam de vida.

‒ Creio que não está onde deve estar. Acredite em mim senhor Oliveira, tem algo que não quer simplesmente contar.

Olhei para ele insatisfeito e cansado, porém, com mais vontade de falar. Apesar da vontade, sabia que não era o momento certo, seria inútil. Levantei-me pronto a sair, mas as suas palavras interromperam os pequenos passos que havia dado.

‒ Há sensivelmente um ano atrás, o corpo do sexo feminino foi encontrado carbonizado na lareira de sua casa, a sua esposa. O caso deu-se encerrado como homicídio voluntário. Há quatro meses, recebemos uma denúncia de algo ou alguém que simplesmente acendia as luzes da sua antiga casa, nos mesmos compartimentos, a mesma hora. Alguns sons que vizinhos seus diziam ouvir. Isso durou por uma semana. Fomos investigar, mas, não havia sinal nenhum de a casa ter sido invadida, nenhuma impressão digital nos lugares mais óbvios, nenhum fio de cabelo deixado para trás. Há um mês, senhor Oliveira, recebemos uma notificação de um médico legista, que fez a devida correcção de um erro que o seu colega havia deixado a um ano atrás: O corpo carbonizado não era da sua esposa.

Eu simplesmente fiquei parado a ouvir, tentando perceber se ele chegaria lá. Se estaria ele enganado?

‒ Terá alguma coisa que queira partilhar comigo senhor Oliveira a respeito disto?

Eu abanei levemente a cabeça. Incerto da minha vontade em respondê-lo. Incerto de onde isso poderia me levar. Incerto dos próximos passos que daria de volta a larga sala do pequeno hospital. Dúvidas penduradas na minha mente. Medo misturado com medo. Uma mistura homogênea assustadora de sentimentos, cujo resultado poderia ser a resposta para o meu livramento. Morte.

 

Por Maya Ângela Macuácua

Escritora, autora do romance “Diamantes pretos no meio de cristais” (Prémio Literário Fernando Leite Couto, 2022)

_______________

[1] História curta, escrita por Edgar Allan Poe, publicado em 1843.

_________________

Este texto tem parte I e II.

Pode ler aqui a Parte I 

Pode ler aqui a Parte II

 

Compartilhar
Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp
Email
Print

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *


Fatal error: Uncaught ErrorException: md5_file(/home/catalogus/public_html/wp-content/litespeed/js/8248132f52ce93ba7e0519640acb5acc.js.tmp): failed to open stream: No such file or directory in /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimizer.cls.php:140 Stack trace: #0 [internal function]: litespeed_exception_handler(2, 'md5_file(/home/...', '/home/catalogus...', 140, Array) #1 /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimizer.cls.php(140): md5_file('/home/catalogus...') #2 /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimize.cls.php(837): LiteSpeed\Optimizer->serve('https://catalog...', 'js', true, Array) #3 /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimize.cls.php(382): LiteSpeed\Optimize->_build_hash_url(Array, 'js') #4 /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimize.cls.php(264): LiteSpeed\Optimize->_optimize() #5 /home/catalogus/public_html/wp-includes/class-wp-hook.php(324): LiteSpeed\O in /home/catalogus/public_html/wp-content/plugins/litespeed-cache/src/optimizer.cls.php on line 140