Via o movimento das pessoas na cafetaria da famosa esquina. Esquina tão bem frequentada pelo Departamento de Investigação Criminal e de Patrulha. Parecia que antes mesmo de inaugurarem este pequeno espaço, saberiam que seria frequentado por polícias à paisana, polícias em serviço, detectives e a lista continua. Devo dizer, não foram poucas às vezes, que me cruzei até mesmo com investigadores privados e médicos legistas. Para mim, sempre foi estranho ver profissionais que trabalham enclausurados de batinas e batas, ou no anonimato, estarem em lugares comuns, como estes, de perto com a civilização. Engraçado.
‒ Do que te ris Sarki?? Berta! ‒ A voz grave, mais que o normal, me firmou em terra, meu fiel, amigo e colega Mabel erguia a mão de modo a despertar a atenção à única garçonete que trabalhava no turno da noite ‒ Mais um café expresso. O que estás a pensar, Sarki?
‒ Ainda não te acostumaste com o meu senso de humor?
‒ Acredite se quiser, ainda não.
‒ Não me diga que isso te constrange, camarada.
‒ Sim e não, mas me deixa curioso.
Eu abanei a cabeça, perdido na resposta e com os olhos postos por cima da minha refeição. Hoje a comida da minha mulher faria falta.
Berta em pouco tempo retornou com uma bandeja e o pedido, soltou um sorriso imediato para Mabel e voltou-se para o seu trabalho. Sempre simpática.
‒ Atenciosa ela, não? Às vezes me questiono se teria tempo de cuidar de si, dos seus filhos.
‒ Pois é, Mabel, se tem tempo ou não, eu não faço ideia, mas nunca a vi desajeitada.
‒ A mulher e os seus segredos. Eu acho que nunca conseguiremos resolver esse enigma. Por falar em enigma, como vai o caso? ‒ Eu sabia o que ele estava a querer dizer, mas preferi dar atenção à minha refeição. Sinceramente, sinto falta da comida da minha mulher. ‒ Heiiii, não se faça de distraído. Olha que não me enganas.
‒ Creio que seja por isso que valem mil as amizades de longa data.
Mabel abanou firme e alegremente a cabeça, o seu orgulho e convicção para mim não eram apenas como qualidade, eram como ratoeira.
–Vá lá, amigo! Libera-te! Nesta profissão eu bem sei que os segredos são como diamantes, e estes devem apenas ser revelados as pessoas certas, na ausência delas, melhor deixar envelhecer num cofre forte.
‒ Não é que as palavras do senhor Comandante Sithole ainda estão na ponta da tua língua?!
‒ Sem dúvidas, amigo.
Mabel engoliu estas últimas palavras com um forte gole no seu café. Ele também tinha uma qualidade que eu apreciava e ele não fazia ideia que o tinha: a sua capacidade de levantar episódios passados que para mim não apenas era uma memória, mas uma profunda lição de vida, uma risada para iluminar o meu dia. O senhor comandante Sithole, era um… Senhor, que era reconhecido apenas pelos seus passos largos e colossais. Faziam estremecer um corredor inteiro e alguns escritórios. Bem, naquela altura, os edifícios de um piso eram feitos de madeira, onde denunciava a entrada de um intruso na casa alheia. Esta estratégia era para manter em sentinela os guardas de celas e os próprios prisioneiros, pois quando um pretendia colocar-se em fuga, os seus passos incriminavam-no. Não era diferente com o senhor Comandante Sithole. Percebia-se pelos seus passos que, o Comandante havia chegado, fazendo-se de imediato um prévio sentido, para recebe-lo á moda oficial. Eu sei, parece exagerado, pois não? A verdade é que ele era a própria disciplina em pessoa e alma. Em tudo o que fazia, percebia-se a diligência e ordem. Dedicava mais tempo ao serviço do que à família. Tanto para o desgosto das mulheres, separou-se de todas as quatro, teve apenas uma filha. Agora já dá para perceber que o seu forte não era a família. Por que razão insisto em chamá-lo de senhor Comandante? É que ele realmente ensinou-nos o espírito de trabalho, a busca real de provas, a compreensão real dos factos. Não vou mentir quando digo que, apesar das suas exigências e ordem de trabalho, ele sempre tomava tempo para falar pessoalmente com cada membro da sua equipe. Tenho a certeza que para além de chamadas de atenção, ele oferecia conselhos de vida aos novatos que ainda não habituavam a cena de um crime, aos seniores que mostravam-se indignados com a má conclusão de um caso. Tinha cá um lado paternal…
Eu sorri.
‒ Precisas partilhar o segredo da tua alegria oculta.
‒ Sabes, já fazem trinta anos que ainda não me esqueci da postura dele.
‒ Aquele homem era um leão na batalha. Não há quem nunca tenha ouvido falar dele.
‒ É verdade.
Voltei de imediato a comer, porque sabia que eu era tão sensível a memórias que poderia ficar mais de vinte minutos mergulhado nelas e esquecer-me da realidade.
‒ Sem muitas voltas, precisas desabafar Sarki.
Eu respirei fundo, pronto a responder.
‒ Sabes que eu não tenho problemas em desabafar, torna-se difícil, quando não tens retornos nos teus desabafos. Como se estivesses a falar para as paredes.
‒ Eu te percebo. Às vezes somos nós que nesse exercício precisamos de alguém que nos ensine, a saber falar.
‒ Felizmente eu consegui fazê-lo falar.
‒ Eu sei ‒ Imediatamente ergui as sobrancelhas, surpreendido ‒ Achas que Unidade não espalharia essa notícia para as outras? As notícias correm camarada e o tempo também, já lá passam duas semanas desde…
‒ Desde a conversa que tive com ele e nunca mais me concedeu a continuidade da mesma.
‒ Deve ter passado por muito. Para não falar sobre isso por mais de dois anos! ‒A suas palavras de imediato chamaram a atenção de outros colegas e civis que estavam por perto. Mabel percebendo isto de imediato chamou Berta para disfarçar o seu erro. ‒ Seria isso um sinal de trauma que estamos a perceber agora? Porque se assim for, eu acredito que não procuraram percebe-lo, sabes, como potêncial suspeito do crime. Mas ainda assim é estranho. Por que um homicida demonstraria sinais de stress pós-traumático?
‒ É isso que quero perceber Mabel. Tudo o que ele mostrou até agora foi a reacção de alguém que estivesse a ser obrigado a matar, na pior das hipóteses… foi vitima, ou estava num estado de dissociação.
‒ Impossível. Tudo apontava para ele, as suas pegadas pelos quartos até a casa de banho, suas impressões digitais nos corpos dos filhos e nele, corpos dilacerados, vestígios de pele nas unhas…
Vestígios de pele.
Quando finalmente quis falar, o rádio de Mabel toca, um sinal de alerta.
Sem muito a fazer até que o meu turno iniciasse, eu decidi acompanhá-lo.
Era mais um assalto ocorrido nas proximidades. Ultimamente tem sido mais comum e cansativo. Desta vez, o assalto envolvia mão armada com a vítima em cárcere privado. Eu não posso condenar. É hipocrisia tomar um ladrão apenas por ladrão hoje em dia. A vida está tão difícil, que um ladrão agora rouba por desespero, a incerteza de um amanhã certo, sobreviver para viver, sonhar a morte provocando-a. Não eram como os tempos antigos onde se selecionava o que roubar.
No local, alguns polícias aguardavam por reforços. Não havia testemunhas, apenas uma denuncia e busca, um dos familiares da vítima havia notado a sua ausência.
A casa estava escura, sem luzes acesas, pouca movimentação. Após chamadas consecutivas da polícia, conseguimos ouvir alguns gritos, um pouco abafados e incompreensíveis, porem após uma análise rápida, percebeu-se que a voz vinha de uma jovem. O seu grito de desespero abalava a minha estrutura, despertava ainda mais o sentido de ataque ao perigo por parte dos outros colegas. Eu mal conseguia imaginar o que ela estaria a passar, a espera de um socorro que em boa parte das vezes, podia ser uma verdadeira falha. Estando neste tipo de trabalho há mais tempo que o necessário, a dor humana parece transformar-se num hábito. Mas vou confessar algo, cada dor torna-se diferente de acordo com a sua intensidade.
Novamente os seus gritos foram ouvidos. Depois de dez minutos, à medida que Mabel pegava o altifalante para negociar com a vítima, percebíamos movimentos nas cortinas das janelas.
O protocolo obrigatório de todo o polícia é negociar com o captor tendo como objectivo preservar a vida da vítima, nem que para isso retirássemos a vida do captor. Neste caso, a negociação estava difícil. O que com muita leveza e paciência finalmente conseguimos ter visão do captor. Com movimentos rápidos, percebi a sua silhueta na janela, pelo que dei sinal ao Mabel, este acenou para mim, negociando novamente com o captor. Com um gesto suave dos olhos em direcção a um canto específico da casa, dando-me sinal de forma que me aproximasse da janela. Levando mais dois polícias comigo. O que não durou muito a nossa espera, de imediato, fomos surpreendidos pela retirada de um corpo atrapalhado pela varanda da casa, pedindo por ajuda e exigindo continuamente.
‒ Por favor, atirem-no! Atirem-no antes que ele me atire!
Estávamos com os olhos todos atentos ao próximo movimento da porta e com os ouvidos acordados para os gritos de uma jovem, com o corpo frágil e trêmulo.
Passados oito minutos vimos erguer entre as sombras um corpo atlético, a mão bloqueando a visão, com passos calmos, como se estivesse à nossa espera. O próximo episódio foi deveras rápido. Depois de nove metros de distância do seu captor, ela imediatamente retira a arma de suas calças e atira de forma quase certeira para três polícias, tentando entrar no carro roubado para fugir. Confesso, se não estivesse atento a ela, eu a perderia em meio a escuridão e deixaria escapar. Atirei-a de modo a paralisar o seu braço que continha a arma e de imediato corri para prendê-la.
Descobriu-se mais tarde que na verdade o captor era a vítima e a vítima era o captor. Eu não estava surpreso. Realmente se eu olhasse para ela mais uma vez dificilmente acreditaria que ela era uma assaltante à mão armada.
O que me faz pensar no ponto que o Mabel levantou antes de sairmos: os vestígios de pele nas unhas.
Por Maya Ângela Macuácua
Escritora, autora do romance “Diamantes pretos no meio de cristais” (Prémio Literário Fernando Leite Couto, 2022).
_________________
Este texto tem parte I, II e III.
Pode ler aqui a Parte I
Pode ler aqui a Parte II
Pode ler aqui a parte III