Como podemos definir o que mais tememos sentir?
Eu não sei.
Porque sei que estou sozinho, mas sinto que ando sempre acompanhado?
Eu não sei.
Não. Não estou louco. Sei o que falo.
Como se estivesse vivo, mas morto e quanto mais morto fico, mais vivo me torno.
Eu clamava pela morte há meses atrás. Procurando por ela em esquinas e lugares desertos. Sopros secos dilaceravam meu senso de solidão. Difícil era caminhar em solos sáxeos, ausentes de vislumbres policromáticos. Para mim era um paraíso. Escutava com os olhos sonoridades agudas, puxando-me mais e mais para o abismo que me esperava. Era um pedido respondido. Recordo-me de um dia, ou noite que pelos mesmos lugares que meus pés pisavam, ter visto uma sombra, que tomava em suas mãos sopros secos, fazendo-os bailar ao ritmo de movimentos já dissolvidos pelo tempo. Que nem mesmo tempo conhecia. Não saberia ele encaixar esses ritmos em algum ponto do seu cronodiagrama. Um estranho fenómeno depois de anos na minha verdadeira alegria. Eu quis me afastar. Quanto mais me apartava, mais me aproximava. Mais angustiado ficava. Mais perdido. Mais desnorteado. E eis que a sombra, com sua pujante postura, cortando horizontes com suas mãos de espada afiada, falou em seu silencio.
⸺ Diga-me. Fala comigo.
Eu apenas ficava calado, não suportando tamanha perturbação. Buscava com os olhos por algum escape, algum espaço vazio onde aquela sombra não tivesse tocado, mas quanto mais vasculhava, mais irritados os meus olhos ficavam.
⸺ Entoa-me palavras para que sejam usadas como pedido a mim. Que se tornem um desespero uma vez falado e que possam engolir-te por inteiro. Diga-me. Fala comigo. Que as tuas palavras sejam aclamadas neste teu mundo e que possam destruir por inteiro o que moldaste como protecção.
Eu procurei segurar o que a sombra queria arrancar de mim.
Com tudo o que sou, eu segurei, ate não mais conseguir.
⸺ Senhor Oliveira! Respire fundo. Aqui estou.
Despertei no mundo que tanto queria fugir, mas que naquele momento era o lugar mais seguro que poderia ter como torre forte, ponto neutro.
Eu tremia. Apercebi-me ainda que eu gritava de forma incontrolável. Sentia-me liberto. Nestas terras onde confundiam erudições com loucuras vindas de outro mundo. Eu conhecia esse mundo. Agora sinceramente acredito melhor que me tomem por louco no mundo que despertei, que de outro modo ser conhecido no meu mundo. Viver no anonimato, mas sendo conhecido.
Fazia tempo que o meu silêncio transformara-se na minha forma de comunicação. Foram capazes de assimilarem o que dizia no sigilo e vazio, perceberam que não mais conseguiriam tornar falsas as minhas palavras. Cuidavam de mim, contudo, o mais surpreendente não era a atenção que os enfermeiros. Enfermeiros? Sim. (Sentia que aos poucos me tornava estranho a certas palavras deste mundo). O mais estranho era que mesmo com todos os seus cuidados, sentia-me sozinho. Meu amigo, não viera visitar-me já há uma semana. Os ramos da árvore Baikiaea plurijuga estavam vazios, sem peso algum. O meu pequeno predador andava desaparecido. Ninguém neste espaço seria capaz de substituí-lo. Nada mais me restava. Eu havia perdido tudo e se tivesse que perder mais. Não estaria disposto a passar por isso novamente.
Ao longo destes dias, decidi não mais dormir. Seria um perigo ceder o meu senso de atenção. Estar pronto para o ataque. Ocasionalmente parecia que poderia ser forte o suficiente, mas não. Não dá. Não podia arriscar dormir. Sonhar tornara-se indesejável. Tentavam dar-me coisas para dormir. Por isso mesmo sabia que não podia confiá-los, por mais que mostrassem cuidados e atenção em tudo o que faziam. Queriam matar-me. Sabia da verdade, porém preferi não deixar isso notório. Eles queriam fazer-me voltar para o mundo que foi tomado por sombras. Eu não voltaria para aquilo.
No meu quarto, com vista ao céu azul, vagueava os meus olhos por palavras ditas pelo homem;
” Na noite do dia em que foi cometida essa acção tão cruel, fui despertado pelo grito de fogo!. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo e, desde então, me entreguei ao desespero.”[1]
Tornei-me o homem em seu total desespero.
Consumido pelo fogo da minha loucura, expandindo-se até ao mais fundo do meu âmago, asfixiando-me para a minha própria destruição. Sorte a dele, estava com a mulher e criada. Eu não tinha ninguém e nada me resta. Foi quando no meu abandono, escuto o sibilo rítmico do Meu Velho Amigo. Ele retornou para despertar-me do sono provocado pela medicação, há muito ansiava pela sua chegada. Levantei-me para saudá-lo de forma educada e cordial, lembrar o quão admirava sua forca e o impacto de suas cores em volta do seu corpo. Desta vez ele não estava sozinho. Viera acompanhado. Pousaram quatro patas na cabeceira que ficava de frente com a pequena janela. Não mais era apenas um só sibilo, mas uma harmonia de sons erguendo o meu corpo para uma nova vida. Meu Velho Amigo encontrou o sentido de sua existência, sua alegria era manifestada por rápidos movimentos com as asas, inclinando a sua cabeça para mim e de forma repetida saltava em torno de quem o acompanhava. Percebi que havia encontrado sua companheira de vida, onde agora juntos quebrariam o ar e esculpiriam o seu destino por onde as suas asas pudessem desenhar o que sentiam um pelo outro. Não mais seriam presos pelo tempo. Eu me alegrava pela sua felicidade. De forma sutil levei o meu dedo indicador para a cabeça da minha nova amiga, dando-lhe as boas vindas e concedendo minha permissão: Que levasse com ele tudo o que era dele e meu. Gerando vidas que consequentemente fariam o Meu Velho Amigo esquecer-se de mim. Mas eu compreendi. Era assim que devia ser. Olhei para o meu Sunbird e acenei com a cabeça, extraindo um sorriso que há muito não me recordava de ter feito. Há quanto tempo fiquei sem sentir esta simples e tola alegria?
Contava eu que o momento seria atemporal. Mas não. Eles tinham uma vida por fazer, vidas por trazer. Levantaram voo, dando um ultimo desfile suspensos pelo ar, desaparecendo no horizonte.
Há dias o senhor Sarki Laboso viera para saber como estou. O que tenho feito e por ai vai. Não queria ser mal educado em simplesmente manda-lo embora, mas me surpreendo pela sua ousadia. Eu já teria desistido. Sentia em alguns momentos uma quietude ao lado dele, levou tempo, mas finalmente conseguiu me compreender e eu também conseguia. Na verdade, eu não queria falar. Não iria falar.
Perdi o total controle dos dias, não mais me dando o trabalho de contá-los.
O enfermeiro entrou para fazer o habitual. Eu me comportei ao habitual de forma a não fazê-lo perceber que eu não seria dominado. Este passeou pelo quarto para certificar que tudo estava no lugar, o que depois de dez minutos ele parou, saindo com um sorriso, apagando a luz, fechando a porta do quarto. Notei pela folga na base da porta, que a luz do corredor ainda estava ligada. Um sinal de vida no meio do silêncio.
Já sabia a rotina. Ficaria horas a apreciar o céu, agora azul, escuro. Contemplando a natureza deste mundo, outrora viva para mim, agora nada mais é que uma memória distante. Não mais poderei voltar ao meu mundo, onde poderia fugir a essas memórias.
Quando depois de algum tempo, sem ceder-me ao sono, os meus ouvidos capturam um ruído. Não entrei em pânico. Concentrando-me na minha distracção. Novamente o ruído. Desta vez, pois é, esqueci-me de um detalhe: não estaria a ouvir nada, mas sim a minha mente estaria a reproduzir por si o som, porque na ausência prolongada do som, o cérebro tende a produzir representações internas do mesmo. A neurologia do som. Por isso não me senti alarmado. Novamente voltei a minha atenção para o céu. Ao meu refúgio e por alguns instantes parecia que o meu corpo desanuviava naquela imensidão, estando isento da força de gravidade. De espaço a espaço, cedia eu a vontade de desligar tudo. Foi quando senti a princípio uma leve pressão por cima do meu peito, não dei muita importância. Mas depois de alguns longos minutos no momento em que a minha mente estava convencida que era apenas um aperto no peito, sentia uma pressão no meu pescoço seguido de um declínio no meu colchão e por último um sopro ardente e seco no meu ouvido.
⸺ Sentia tua falta, sabes? Por onde tens andado? ⸺ Uma pausa. Uma pausa que me causavam assombro e sopros de calafrios, refinados por olhares alheios sobre mim. ⸺ Quando chega a madrugada, onde nem mais uma alma respira de forma abafada por estes cantos, nem um ruído para incomodar tua aflição, tu pensas em mim? Pensas o quanto nos amávamos, até não existir mais fim? Eu penso.
O sêr respirou fundo, passando suas mãos sobre a minha testa, boca. Passando os seus lábios sobre os meus, fazendo cair suas mãos até ao meu peito. Eu não sabia se a entidade sentia fome ou outra coisa, mas parecia sedenta. Enquanto por mim passava os seus dígitos eu dei um leve esquivo, imediatamente parando com o que fazia, o sêr olhou para mim confuso.
⸺ O que se passa, querido? Não sentiste falta da tua mulher? Desapareci para o mundo, mas voltei para ti. Vamos. Ceda um pouco.
⸺ Tu não estás morta. Tu não estás morta!
⸺ Shhshhhhshhhh… Calma. Calma meu amor. Eu sei a falta. Eu sei o sofrimento. Estou aqui. Ceda um pouco. ⸺ Sentia o calor de suas mãos sobre as minhas pernas e depois sobre a minha cabeça, procurando segurar-me longamente em seus imensuráveis braços. ⸺ O que fizeste de ti? O que eles fizeram contigo? A verdade tem te remoído? Estou aqui, ceda um pouco. Sinto falta dos teus braços sobre mim.
⸺ Tu não estás morta. Tu não estás morta. Não…
Abruptamente os seus longos braços foram lançados sobre mim repetidas vezes, em gestos rápidos e certeiros, sentia a minha carne sair-me dos ossos, sentia a minha alma a desprender-se de mim.
⸺ Cala boca. Cala boca idiota! Eu fiz tudo por ti! Porque não consegues enlouquecer??? Por um instante?! Eu arranquei-te tudo. Mas parece não ser suficiente. Eu só queria ver-te feliz, aliviado percebes? Soube que, estão a mexer coisas que não deviam, teu amigo precisa estar mais perto da morte para descobrir a verdade que tanto anseia.
O peso do sêr bloqueava-me todas as possíveis estratégias de defesa. Da mesma maneira que ela entrou, foi da mesma maneira que saiu, contudo, os meus gritos ainda ecoavam nos corredores. Despertando socorro a meu favor que chegara prontamente.
Receio que não será o caso do Sarki Laboso e eu sentia por isso, pois nada podia fazer.
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[1] Obra de Edgar Allan Poe O GATO PRETO, publicado no ano de 1843
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Por Maya Ângela Macuácua
Escritora, autora do romance “Diamantes pretos no meio de cristais” (Prémio Literário Fernando Leite Couto, 2022).
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Este texto tem parte I, II, III e IV.
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