Vultos

Muitas eram as noites que acordava suado, com a pulsação acelerada, mãos a tremerem. Todas as noites eles vinham, com as suas bandejas e comprimidos calmantes. Eu preferia chamá-los assim, mas eu sabia o que eram.

Parte I

O suor pendurado em minhas sobrancelhas tornou a visão embaçada, os meus sentidos tornavam-se estáticos, faltava o meu coração dar o último batimento para que finalmente pudesse dar um aperto de mão à Morte.

‒ Como descreve a si mesmo senhor Oliveira?

Sincero, discreto e analista… demasiado analista. Eu tinha toda frase elaborada na minha mente, mas dizer seria outra fase que não queria ceder. A expressão verbal das palavras, às vezes torna-se uma fraqueza para os que aparentemente eram fortes. Era mais preferível ficar calado e não responder. Então, não respondi.

‒ Quero apenas saber um pouco mais de si, não me leve a mal.

Preferia na melhor das hipóteses criar um dialogo fictício na minha mente, uma forma de distanciar-me de tanta pressão e insistência em uma conversa que não dará os seus devidos frutos.

Depois de dois minutos a bater a caneta na madeira da secretária, num ritmo descompassado e inquietante, o abanar das suas pernas indicavam que ele já estava farto desta pequena tentativa extensiva de conversa, tanto quanto eu, os olhos em alguns segundos olhavam para a porta, conseguia perceber que a sua paciência havia desvanecido. No terceiro minuto vejo-o a erguer-se em direcção a porta, fechando-a. Deixando-me sozinho. Eu e o relógio éramos as únicas coisas que emanavam sinal de vida. Dera eu se a contagem progressiva do relógio pudesse aproximar-me da Morte. Queria muito a sua companhia. Contudo, era engraçado constatar que quando menos queremos a morte, ela surpreende-nos com a sua aparição. Deveria eu fingir que não queria a morte para que pudesse atrai-la a mim? Deveria eu ignorar a minha necessidade humana em ver-me dispensado desta forma cruel de viver?

 

Não sei dizer ao certo que dia da semana seria este.

Eu tinha o hábito de fazer uma contagem minuciosa dos dias, calcular as horas restantes para o término do trabalho e ainda programar algumas horas extras que prestaria em meus passatempos para alguns, um tanto que absurdos, mas para mim definiam a essência da natureza humana. Não era uma pessoa de muitas palavras, na verdade o trabalho compensava as minhas palavras. Conseguia bloqueá-las com alguma tarefa que poderia encontrar em meio ao dia. Agora, estando perdido em uma névoa de questionamentos e confusões em não saber ao certo que dia da semana eu estaria a viver, para mim era uma outra forma de tortura.

Mas tudo bem. Nem sempre podemos controlar a vida, todavia podemos torná-la mais divertida.

Por isso, tomei a oportunidade de me dedicar à leitura, sempre que as longas persianas eram abertas, de modo a permitir que a luz solar pudesse iluminar e aquecer a sala fria e sem vida onde estávamos. Pudesse também despertar algumas mentes caídas em um sono de esquecimento. É que na verdade, onde estou, cada um quer tentar se esquecer de algo ou de alguém, e tentar viver. Mas às vezes, confesso que alguns tentavam demais e outros fingiam tentar. Eu não me importava com eles. Mas como bem havia dito, eu sou uma pessoa muito analista e detalhes não podem passar desapercebidos por mim.

Descobri nestes tempos livres, que havia um certo sentido nas palavras de alguns escritores, sentidos ocultos, confissões tenebrosas. Tentei imaginar o que ele sentia quando escrevia estas passagens, o que ele estaria a pensar de modo a dizer tão bem na escrita os seus pensamentos. Eu não tinha essa capacidade, portanto gostava de apreciar e estudar os que tinham. Descobri ainda, que existia algum tipo de mistério e confidências que um certo passarinho sempre ansiava dizer. Se os animais falassem, certamente saberia que ele iria me consolar vendo-me neste estado. Todas as manhãs, quando o relógio marcava oito horas e vinte minutos, o vento estabelecia coordenadas fixas para passear, permitido que os ramos de uma árvore Baikiaea plurijuga, cujas flores roxas movimentavam-se de modo atrair alguns pequenos predadores que flutuavam suspensas em seus ramos. Foi em um dia destes, que nessa rotina da natureza, chamou para si um pequeno predador, não muito pequeno, teria aproximadamente 14 cm, bico longo encurvado[1]. Achava eu que de predador não teria nada de especial, mas eis que ele provou o contrário. Pousou em um dos ramos altos e não demorou muito para identificar dentre as flores aquela que usaria para tirar o seu néctar. Cravou o seu bico longo nela. O pequeno predador estava tão concentrado em sua refeição, que quase fora atrapalhado por um outro que queria de certeza tomar dele o seu alimento. Não demorou muito até que o mesmo pudesse retirar o bico da flor, para usá-la como arma, erguia o seu pequeno peito e mostrava passos temerosos de modo a iniciar uma luta que não durou muitos minutos. Esse pequeno gesto, foi mais que suficiente para que o seu adversário pudesse abandonar o território alheio.  Eu olhava tudo com profundo encantamento, do outro lado da enorme janela. Olhava para a sua pequena postura, as suas penas pretas que pareciam ficar douradas com o raio do sol exalando um senso de vaidade e autoridade para um animal tão inofensivo. Nessa contemplação, ele desviou o seu olhar para mim. Observou-me e acredito até que conseguiu perceber que ao contrário dele, eu estava preso, indefeso, em um território que não era meu, em uma vida que não me pertencia. Até certo ponto, pareceu-me que a sua postura me provocava, o meu cativeiro era o seu motivo de orgulho. Isso afirmo seguramente.

Mas depois de algumas semanas sem vir, sentia eu falta da sua coragem e procurava me concentrar ainda mais na leitura. Precisava me distrair e pensar menos na morte. Talvez assim encontra-se um motivo para ainda encarar a vida com esperança.

Não poderei dizer muito de como são as minhas noites. Outrora um campo de batalha, onde via sombras querendo degolar-me vivo, gritos agudos e sangue espalhado por toda parte. Muitas eram as noites que acordava suado, com a pulsação acelerada, mãos a tremerem. Todas as noites eles vinham, com as suas bandejas e comprimidos calmantes. Eu preferia chamá-los assim, mas eu sabia o que eram.

Em um destes dias, embrulhado nos lençóis quentes das belas e enormes palavras do Gato Preto[2], uma voz me desperta do sono que estava a ter. Minha cabeça ergueu, e vi o jovem que normalmente cuida de mim com um recado. A sua presença era o indicativo de que teria uma visita a minha espera.

Sou levado para o mesmo compartimento que antes estava. Com uma luz difusa, apenas paredes, com uma cor fria. Confesso que estar nestes tipos de ambientes provocava-me náuseas e uma sensação de fraqueza.

Sento e levo as minhas mãos para a pequena mesa e aguardo. Aguardo até que a porta traz vida a uma sombra, com uma altura média, um pouco anafado, com passos curtos e não muito silenciosos.

Respiro e olho para o meu opoente. Imagino mais uma conversa sem frutos, sem rumo, uma perda de tempo.

‒ Muito bem, estimado senhor Oliveira. Eu sou Sarki Laboso, mas por favor, trate-me por Sarki apenas. Como tem passado?

Consegui perceber uma luz em seus olhos. Uma ambição que não conseguia descrever, uma propensão que para mim era estranha. Não sei dizer ao certo como descrever os meus sentidos neste momento. Mas a sua última questão, fez-me reflectir em meu estado de espírito, algo que não fazia há muito tempo.

 

Por Maya Ângela Macuácua

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[1] Amethyst sunbird

[2] Obra de Allan Poe publicado no ano de 1843

 

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