Por: Edmilson Francisco Panguana
Somos aquilo que fazemos de nós, argumenta Sartre. Mas se somos o que fazemos de nós, então quem dita o que fazemos? Aparentemente, ninguém, somente estamos “condenados a ser livre”. No entanto, Heidegger responde, somos “Dasain”, seres no espaço e no tempo. Isto é, o contexto sócio-histórico em que estamos inseridos diz muito sobre nós. Pois, condiciona as nossas escolhas e acções. Essa influência do contexto é notória em Ian Blanco. A valorização do “parecer” no lugar de “ser” típica da atualidade, é evidente em “Senhor” uma obra que marca transição do artista do banal para o banalíssimo.
Antes de “esticarmos a cena” para um pensamento mais filosófico, convém olhar para a matéria-prima oferecida por Blanco, as batidas, a cadência de voz, o jogo de palavras que ora se aproxima da sátira, ora cai na repetição maquinal. O “Senhor”, reúne oito faixas musicais, repletas de batidas modernas, atravessadas por conteúdos ligados à identidade, superação, lealdade e fé. Não se trata de percorrer faixa por faixa da Ep, mas de, a partir de duas músicas, Histórias da minha cidade e Esticar a cena, vislumbrar a lógica que atravessa a totalidade da obra. Do fragmento ã totalidade, percebe-se como Blanco constrói a sua persona artística e como sua música se inscreve num contexto social especifico.
Em “Histórias da minha cidade”, emerge a sátira da condição social dos jovens moçambicanos, marcada pela crescente animalização da vida humana pela obsessão com o “parecer” no lugar do “ser”. E, o apelo a empatia, “se parares para pensar, somos todos iguais” soa quase como um “hashtag”, mas carrega a ironia de Orwell em “Revolução dos Bichos” onde a igualdade existe, sim, mas sempre há uns mais iguais do que os outros. A cadência do ritmo quase arrastado pela batida reforça o tom de denúncia. A voz compassada se impõe sobre a música, dando-lhe o teor de uma crónica. Isso, enriquece a imagem da “animalização da vida” e sustenta o contraste entre a seriedade do discurso e banalidade do corro “essas são histórias da minha cidade”. O resultado é um “senhor” que promete crítica e profundidade, mas acaba por oferecer somente um inventário de temas sociais mencionados sem digestão critica. Uma vez que faltou a exploração dos conteúdos listados nos dois versos do Blanco, como se fosse uma caderno de receitas de cozinha.
Já “Esticar a cena” revela-se um tesouro polissêmico que ironiza a fé. A faixa reflete sobre a tendência juvenil de “ir na fé”, isto é, a naturalização de comportamentos de risco que vão desde a exposição às doenças sexualmente transmissíveis até à sinistralidade rodoviária. À medida que denuncia o uso abusivo da fé pelos crentes, a música estabelece diálogo direto com “Histórias da minha cidade”, onde se expõe a manipulação da fé pela classe pastoral. Com a riqueza semântica de esticar a cena, Blanco promete o que nem ele, nem o seu parceiro Jay Arghh conseguem entregar nos seus versos, limitando-se apenas a explorar conteúdos de ostentação. As vozes cadenciadas sutentam esse mergulho no conteúdo banal.
Se Sartre afirmava que somos aquilo que fazemos de nós e Heidegger falava do Dasein como ser lançado no tempo e no espaço, Blanco recorda-no que o tempo e o espaço são atravessados por desigualidade, fé manipilada e juventude à deriva. O senhor não é só um conjunto de oito trap-beats, é também um espelho de uma geração em busca sentido, mesmo quando o sentido perde-se na repetição e ostentação vazia. A partir de dois fragmentos, percebemos que Blanco não constrói só música, constrói também um manifesto urbano, ainda que inacabado. Nesse sentido, a obra reafirma que a construção da persona artística é inseparável do contexto socio-histórico, somos, afinal, aquilo que fazemos de nós, mas só porque primeiro o mundo já fez alguma coisa de nós.
Disponivel para streaming em: https://open.spotify.com/artist/7jXWZ…