Por: Edmilson Francisco Panguana
“A busca pelo Ter é uma ilusão que nos faz esquecer a beleza do Ser, e nos leva a um vazio que nenhum bem material pode preencher. A verdadeira abundância é alcançada através da gratidão pelo que já temos, e não pela busca incessante pelo mais.”
(Sartre, 1905-1980)
Byung-Chul Han, na sua obra “Sociedade do Cansaço” apresenta-nos um debate profundo sobre a crise existencial na sociedade contemporânea, que mantém um diálogo estreito com o texto “Decadência” de Eduardo Quive. Na visão de Han, o capitalismo estabeleceu a ideia de “sociedade do desempenho”, na qual a existência humana é cooptada pelo modelo económico, reduzindo-se a uma constante luta pelo sucesso e pela autoexploração. Nessa configuração, Quive encontra um pano de fundo, no qual constrói sua crítica à mutilação simbólica da vida moderna e a perda de sentido.
Para efeito, Quive vale-se de um narrador heterodiegético e omnisciente, para percorrer a trajetória de Vitorino. O trompetista e vocalista de renome, que já teve “o mundo aos seus pés”, representa o preço ‘trágico de uma existência inteiramente dedicada à performance e ao reconhecimento, confirmando que o triunfo na luta imposta pelo capitalismo (Han) pode, ironicamente, significar a decadência do ser (Quive). Vitorino que no auge da carreira fizera viagens pela África e performances para delegações de chefes de estado. Nalgum momento contrai tuberculose, o que interrompe sua ascensão, então, retorna a sua terra natal, Moçambique, onde confronta o abandono.
Nesse ponto da narrativa revela-se a real “decadência”, quer fisica, quanto espiritual, a falência do homem que confundiu o brilho dos palcos com o valor da existência. O estatuto do narrador, heterodiegético, e a focalização omnisciente, no conto, não funcionam como meros recursos narrativos, mas como ferramentas para reforçar a objectividade e o distancimento emocional entre o narrador e o personagem. Isso, permitiu ao narrador descrever a decadência sem censura, como um legista faz autópsia a um corpo inerte.
Os recursos narrativos mencionados enriquecem a narrativa, dando-lhe uma tonalidade crítica e quase clínica. Espelhadas na frieza da “sociedade do cansaço”, onde o sujeito exauto torna-se incapaz de sentir a dor alheia. Essa frieza denota-se ao longo do texto com a indiferença do mundo com o Vitorino, mas também com a passagem textual em que se maltrata um cego ao atravessar a estrada, como um símbolo da cegueira moral que contamina o mundo moderno. Na mesma medida retira a dimensão empatica da história, limitando ao leitor a exploração da plano psicológico do personagem, permitindo apenas que o veja definhar à distância.
Entretanto, talvez seja exatamente ai onde reside a verdadeira crítica sociedade capitalista, ao negar acesso à dimensão psicológica de Vitorino, o narrador revela um estado de espirito mutilado, assim como do olhar contemporânea, observador e incapaz de sentir. Então, o autor lembra-nos da questão levantada por Kafka, “Quem te amaria se deixasses de ser útil?”, cuja resposta ficou subetendida na obra “A Metamorfose”. Desta forma, o conto “Decadência” força o leitor a reconhecer a sua própria cegueira moral diante do sofrimento alheio, criando um choque frio com a indiferença.
Assim, a citação em epígrafe desvenda o sentido profundo de decadência, o homem moderno vive aprisionado na ilusão do “Ter”, confundindo sobrevivência com existência. Dito nas palavras de Han, em nome da produtividade e do sucesso, a sociedade contemporânea mutila o próprio sentido da vida, o Ser cede lugar ao Possuir. Nesta corrida pelo “mais”, a capacidade de sentir o outro e de reconhecer a própria fragilidade perde-se. A inultilidade social de Vitorino é um reflexo de um mundo doente, no qual quem não produz deixa de existir aos olhos do outro. Portanto, narrarando a decadência de um músico, Eduardo Quive denuncia também a falência espiritual de uma era que ‘já não sabe viver, apenas funciona. Nessa nova era, a dor, o tédio e a pausa, outrora partes legítimas da existência, transformam-se em falhas morais: ninguém pode parar, a felicidade é obrigatória e o fracasso, um pecado.
