Elton Pila/2019
“o deus restante” é a obra. Luís Carlos Patraquimo autor. Mas, se casos há em que a obra classifica o autor, este é um deles, desde logo pelo título. Afinal, Luís Carlos Patraquim é dos nossos nomes maiores da poesia, continua a colocar a pena no tinteiro e a influenciar, com o traço que lhe é próprio, os que chegaram depois dele. Portanto, ou melhor, por tanto, deus restante. A obra, que foi uma das distinguidas na última edição doPrémio Oceanos, pode ser lida como uma saga bíblica, uma oração de uma alma inquieta a um deus que resta, quando a angústia nos faz desacreditar em todos os outros deuses. A obra está pejada de referências, como toda obra que lhe abriu o caminho, que talvez passem ao lado do leitor comum ou sem bagagem cultural igual a do autor. Talvez por isso é rotulado hermético, como se colocasse sobre os textos uma cortina de ferroquase impossível de transpor. Mas fá–lo, não como quem se esmera, como quem respira, “não é tão pensado como se pensa”. Também nesta conversa evoca outros nomes, outros poetas, outras formas de fazer poesia. Conversámos na Fundação Fernando Leite Couto, nesta visita – animada pela homenagem que lhe foi feita no Festival Resiliência – a Maputo, vindo de Lisboa, para onde foi viver em 1986.
Escritores há que passam a vida na sombra duma determinada obra. O Patraquim não teve esta sorte ou azar?
Eu acho que não é, propriamente, um azar. Muitas vezes é uma opção. Há muitos casos de escritores com uma, duas, três obras. A literatura não é a quantidade de livros que se publica, é cada livro e o que nele contém. E a relação deste com os outros, com as temáticas que aborda. Isso no caso da prosa. No caso da poesia, não se pode falar numa única temática.
No meu caso, como diz o Manuel Bandeira, poeta brasileiro, sou um poeta bissexto, publico quando surge alguma oportunidade e tenho motivos para isso.
Um grande escritor brasileiro, que ganhou o Camões, podia não ter ganho, mas no caso ganhou, que é o Raduan Nassar, tem apenas três livros: “Menina a Caminho”, “Um Copo de Cólera” e “Lavoura Arcaica”. Há um outro que não sei se já publicou ou se ainda continua lá na sua lavoura arcaica.
Saiu dela ano passado para o ataque ao Bolsonaro…
Mandou esse ataque, muito bem merecido ao Senhor Bolsonaro.
A olhar por aí. Acha que o escritor tem uma responsabilidade política nos tempos de hoje?
Uma intervenção cívica. Uma intervenção cívica não deixa de ser uma intervenção que se espraia para a intervenção política. Foi por imperativo ético que Raduan Nassar proferiu as declarações que proferiu. Por outro lado, toda a nossa vida é política. A arte dos políticos foi separar as coisas. E é em relação a isso que devemos estar atentos. Política é tudo.
Numa certa dimensão, os intelectuais seriam representantes da angústia, da responsabilidade ética e moral, seriam eles as primeiras vozes da tribo para levantarem um conjunto de questões, de avisos, de inquietações.
Hoje, vivemos um tempo diferente. Um tempo de redução desta dimensão, inclusive pelas novas tecnologias de comunicação e informação. As coisas mudaram. Vivemos o tempo da mediacracia. Temos canais que servem isso na perfeição. Por exemplo, o WhatsApp não implica e nem convida ao contraditório, porque se fecha numa espécie de mónada. O Bolsonaro usou muito isto na sua campanha. E houve um conjunto alargado de pessoas que só seguiam aquilo, como se fosse a única verdade, quando eram milhões de fakenews, de agitações absolutamente mentirosas, falsas, sobre o Brasil.
E qual será o papel do escritor neste contexto?
O papel do escritor num primeiro e único momento, no arco de tensão que abrange tudo aquilo que nos constitui como indivíduos, como sujeitos individualmente considerados, é em primeiro lugar a fidelidade ao mundo que ele teve o atrevimento de abordar, criar, descrever e publicar. Esta fidelidade a tribo, como diria Mallarmé, no sentido de estar atento e conseguir dialogar com ela, falo sempre a partir do momento que escreve e publica. Mas isso se dispersa depois, naquilo que é o segundo acontecimento da escrita, a recepção do leitor ou do estudioso que estuda a obra.
Pensa numa literatura engajada politicamente ou é mais da arte pela arte?
Esta dicotomia é falsa. Muito mais em 2019. Toda a literatura é arte, é política, é filosófica. A verdadeira grande literatura implica-nos a todos em todas as dimensões que nos constituem como seres de linguagem, de problematização da nossa própria complexidade, individualmente considerada.
Há uma linha que une toda a obra de Patraquim. Isto foi intencional?
Não foi uma intenção. Se há uma coerência, que se pode registar no tempo, numa média duração, é interior. Perceberemos que há quatro ou cinco grandes temas que preocupam um autor em particular. E um bom leitor, um bom estudioso, pode encontrá-los e decantá-los do resto. O que me parece é que em “Monção” [primeira obra do escritor] já estava implícito tudo o que aconteceu a seguir, nos livros que fui publicando, como se fosse uma espécie de continuidade, com uma ou outra ruptura, com uma espécie de desvio, porque os autores vão vivendo outras coisas. Mas entre “Monção e “o deus restante” (2017, cavalo do mar) para quem ler com atenção, há elos.
“Monção” foi uma espécie de apresentação do seu projecto literário?
Nunca tive um projecto neste sentido. Nunca planifiquei. Nunca pertenci a dimensão do plano, nenhum plano meu. Fui sempre de alguma maneira indirigido por mim próprio.
Então como lhe chega “Monção”?
Porque estou no Índico, reportando-me ao título. Porque toda a poesia moçambicana, tirando Gloria de Sant’anna, em alguns momentos, tirando Rui Knopfli com o “Reino Submarino”, que remete a água, a psicanálise da água, toda a poesia moçambicana, o mainstream dessa poesiaé toda ela do interior da terra, como se não houvesse mar, mas o mar faz parte da história deste país em todos os sentidos. No pós-independência, vivemos representações de poder e teatralizações de poder a partir do interior da terra. Temos todo um conjunto de silenciamento de grandes linguagens, desde Inhambane até às Quirimbas, passando por Angoche, em tradições orais e literaturas que já são de miscigenação, que tem a ver com toda costa do Índico, e que remetem, dalguma forma, para cultura swahili. Portanto, era como quem põe o ouvido com um copo na parede para ver se ouve as vozes que aparentemente estavam do outro lado, mas que são nossas, todas elas são nossas.
Nós pouco conhecemos das literaturas do Índico, desde as Ilhas Maurícias, Quénia, Tanzânia, Somália… Mas elas são importantes. Nós devemos participar delas, não digo isto como uma obrigação, digo isto como uma vivência, uma espécie de clarear de vozes e circunstâncias, que levam a que o prosador ou poeta sinta isto, perceba isto, queira falar sobre isto.
Apesar de não ser autor refém de um livro, parece-me que seja refém de um estilo. Quando pensamos numa obra de Patraquim, já sabemos o que vamos encontrar, no sentido de tratamento de linguagem.
Há uma frase antiga dos franceses que diz “O estilo é o homem”, coisa lá para trás, século XIX. Mas passa um bocado por aí. No fundo, cada escritor pega no magma da língua em que se quer exprimir, em que se pode exprimir. Mas eu acho que a palavra não é refém, percebo o queira dizer com refém, mas acho que seja uma reelaboração, reiterada, andar a volta, um conjunto de obsessões, de preocupações, de vivências que nos constituem e que precisamos transcendê-la inventando uma gramática que, muitas vezes, não é assim tão pensada. É uma respiração que toda a gente tem. E as coisas saem duma determinada maneira e não de outra. Se isto depois traz uma espécie de impressão digital ou estilo como se diz, o que hei-de fazer, mas passa por aí.
O termo é mesmo “obsessão” como algo de que não se pode fugir.
Dalguma maneira, passa por aí. A poesia é no fundo tentar relacionar todas as estâncias, abrir todas as portas, provavelmente, nunca se chegará lá, mas é preciso tentar isso, ao sentir a inquietação que é uma espécie de nebulosa, que precisa duma linguagem, e por quê sentimos isso ou deixamos de sentir é um mistério que nos leva a ir sempre em demanda disso, uma espécie de ir sempre em demanda do cálice sagrado, porque a poesia se aproxima do sagrado. Não confundir sagrado com religiões, porque as religiões, segundo uma célebre definição de Mircea Eliade, que é um dos grandes historiadores da história das religiões, são só – e com este só não estou a apoucar nada – as administrações do sagrado, administrações até num sentido político, basta olhar a história das religiões e das igrejas. Aelocução mais profunda da bíblia ou do alcorão percebe-se melhor lendo os grandes momentos poéticos desses livros.
Por isso que se sente um pouco a ideia de oração n’“o deus restante”?
Oração em que sentido?
No sentido em que revela uma espécie de angústia em relação ao tempo que vivemos e precisa clamar/falar com alguém, talvez o deus restante.
Sim, também. Para isso, tem momentos de comparação, o poeta inglês John Done, o poeta dos poetas Holderin, e Rilker, como tem, noutro registo, na poesia swahili da tradição oral. Rilkerque escreveu “As Elegias de Duíno”, uma das obras máximas da literatura do século XX. A edição d’“As Elegias de Duíno” acontece num momento mágico da literatura europeia. Em 1922, também é lançado “Ulisses” de James Joyce e o primeiro volume d’ “A Procura do Tempo Perdido” de Marcel Proust. São obras fundamentais da literatura universal.
Já nesta conversa, percebemos as muitas referências que faz. Se olharmos para “o deus restante”, percebemos uma obra pejada de referências, também é assim noutros registos.
A referencialidade é um congregar de vozes. Da mesma maneira que na poesia panegírica da tradição africana, há aquela evocação dos heróis, dos chefes, em que se enaltecem as virtudes, há uma dimensão épica, também uma certa elegia. Mas não é propositado no sentido em que algumas pessoas possam pensar.
As referências que temos em “o deus restante” são seus heróis ou nem por isso?
Passa por uma gama de sinais, que não sei classificar. São vozes que se interpenetram. As coisas saem porque estão dentro de nós, porque lemos, porque nos preocuparam, nos preocupam. De repente, parece que chegam e sopram-nos alguma coisa, é ao ritmo da pulsação que as coisas acontecem. Não é assim tão programado.
Em “o deus restante”, vai de Erik Satie, William Blake a Xiquelene…
(William Blake era um visionário, uma figura completamente maravilhosa, como poeta).
São saltos quânticos, porque tudo está a todo lado, a todo momento e traduzir esta espécie de simultaneidade é muito difícil. É uma espécie de ambição maluca que nunca se consegue, mas se tenta, pelo menos.
É chamado a assinar os prefácios de livros de autores que começam agora a despontar. Estou a pensar, por exemplo, n’“As Idades do Vento” de Jaime Munguambe e “A Descrição das Sombras” de M.P. Bonde, vencedor do primeiro prémio literário da Fundação Fernando Leite Couto, do qual também foi júri. O que pensa da nova poesia moçambicana?
Não deixam de ser meus confrades, a começar, a meio, ou no fim. Todos estamos a começar, a meio, e no fim. Vivemos num espaço ainda tão hierarquizado, que dá sempre a entender que alguém está num degrau acima ou abaixo. O que existe são palcos à italiana.
Mas, se há texto a ler, é o do António Cabrita sobre a nova poesia moçambicana.
Sinto que há uma outra dimensão do sujeito, preocupações ontológicas e metafísicas, diferente da narrativa de discurso único que desembocou na chamada poesia de combate, na poesia de afirmação de uma identidade moçambicana, que na verdade há muitas e não apenas uma. Aliás, o Steiner já nos havia ensinado isso, não somos uma só coisa, somos muitas ao mesmo tempo. E as sociedades também. Esta nova geração tem outro tipo de preocupações, aquilo que, por facilidade de linguagem, muita gente chama de poesia intimista. Foi o que disseram em relação a minha poesia. Sem ofensas, era como se eu fosse uma espécie de autista que não sabia o que se passava a volta. O mergulhar nas profundezas de cada um de nós, através da língua e da linguagem, é uma característica de hoje. Umas delas, porque há outras. Uns estão a tactear, outros a verem a forma e o conteúdo do seu processo poético, outros mais consagrados.
Depois do grande momento de euforia que foi a independência, chegou o momento dalguma indignação, as pessoas tiveram de se interrogar, entrar nos seus casulos, dentro de si, nas suasmónadas. Estes interstícios de ligação, essa nervura, no fundo não deixa de acontecer entre todos os poetas que trabalham com palavra.
Mas há sempre uma temporalidade.
Não deixa de haver uma temporalidade, em que as coisas acontecem. Não por acaso, há um tipo de poesia que não se fez em 1975 e se fez depois. O que acho mais interessante na nova geração e pode parecer paradoxal, é o sentido de leitura, memória, e há uma espécie de voz contínua que diz respeito a todos. E não tem de ser forçosamente só de outros poetas moçambicanos, tem a ver com tudo o que lêem. Tudo o que para eles é a sua referencialidade, a sua experiência, desde que seja vivida sem grandes angústias. Há um momento em que a angústia é necessária, como na adolescência, quando estamos todos cheios de borbulhas e fazemos poemas sobre borbulhas, é natural que aconteça. Depois, há um tempo de maturidade, em que as coisas tomam outra dimensão, e esta dimensão para um poeta verdadeiro é a tomada de consciência duma dimensão trágica da condição humana, a consciência de finitude, perceber que o poema é um desafio para o infinito que não há, para exorcizar uma finitude que sabemos estar presente.
Fez há pouco referência ao facto de ser considerado um poeta intimista. Por quê acha que assim o consideravam?
Sempre gostei de sutiãs e calcinhas.
Há uma espécie de contradição nesta ideia de ser “intimista”, porque em “o deus restante” parece-me uma alma preocupada com o mundo, ainda que esta preocupação parta de dentro.
Eu não sou radical. O Beergman também não era. Há uma frase dele que diz “procurar a felicidade por si, sobretudo nesta sociedade de consumo, é a coisa mais desprezível que o ser humano podia buscar”. Pode haver momentos de conjugação dos astros que, segundo a gramática de cada um, é o momento de felicidade. Mas tudo isto está conspurcado pelo tipo de sociedade em que vivemos, que é uma sociedade de coisificação de tudo, de reificação das coisas, não das coisas de que falava Rilker, essas eram importantes, daí que eu fale dos armazéns do ser, que é ironia, uma coisa que aparentemente nada tem a ver com a nobreza do Ser na filosofia, por isso trato como armazéns, é a preocupação angustiada ontológica. Nunca mais me esqueço duma frase de AlbertCamus, que me inquietou muito, é mordaz, profundamente violenta, mas também profundamente lúcida: “é preciso imaginar Sísifo feliz”.
A poesia há-de também ser sobre levar a pedra ao alto e ela voltar a rolar?
De certa maneira, sim. É sobre aprender a cair. No fundo, é sobre saber cair.
Na esperança de levantar num novo livro… para voltar a cair?
Estamos a cair a todo o momento. Levantamos e continuamos. Como diz o Ezra Pound, noutro registo, make it new. Eu não tenho esta pretensão, mas percebo o que quis dizer com isso. Ele fê-lo. Ele fê-lo naquele sentido, voltando a geração que está agora aí, ele fez fazendo a exegese, a releitura, quase a hermenêutica de todos os poetas que o antecederam, todas as literaturas, desde o Kataique são as traduções que ele fez, da poesia chinesa, até a poesia provençal europeia, e tudo o que achou que era a sua inquietação, a sua necessidade de memória das literaturas para a poesia que ele queria escrever. E escreveu magnificamente. Salientava só isto, acho que esta nova geração teve esta preocupação de religar as coisas. Um poeta irlandês disse que a obrigação de qualquer poeta é ter a consciência da poesia desde o seu começo, e, se conhecer muitas línguas, melhor ainda. Porque vai de Homero a grande poesia africana da oralidade, passando pela indiana, chinesa e todos os grupos humanos. Essa é a obrigação do poeta, ter a consciência disso, pelo menos.
Conhecer a história para inventar o inédito?
Cada um é livre das suas experimentações e equívocos. A questão é sempre o conseguimento disso ou não, no conseguir atingir a gramática do poema. Há cinquenta mil formas. A poesia pode fazer parte do sistema literário, mas eu a considero uma coisa um pouco a parte.
Porquê?
Porque é uma espécie de voz primeira, que retém em si toda a potência da linguagem. E esse é o grande desafio do poeta. Cada palavra é um átomo com a sua radiação, seus electrões, que por sua vez interferem com o outro, numa dimensão que as vezes nos escapam, só intuímos.
